Artesã de Valongo criou presépio com mais de mil personalidades em crochê

Da Redação
Com Lusa

A II Guerra Mundial retirou-a da escola na 2.ª Classe, mas Clemência Rocha aprendeu a ler nos jornais, recorrendo anos depois a bibliógrafos para entender a Bíblia, que agora expõe em 1.058 peças em croché em Valongo, distrito do Porto, norte de Portugal.

Clemência Rocha, ou ‘Mença’, como gosta de ser tratada, reúne em si uma história de superação, começada pela guerra que a encontrou na escola da aldeia, em 1939, e da qual, devido à “ausência de professores”, causada pela “falta de gasolina nas camionetas” que viajavam do Porto para Valongo, teve de sair logo no segundo ano.

“Aprendi a ler com a história da guerra. Lia os jornais que o meu pai comprava para a taberna ao lado da mercearia da família”, contou à Lusa, falando de um tempo em que se “recusou a parar de aprender”, num hábito que, oito décadas passadas, continua a manter: “apesar de hoje ler menos, logo de manhã tenho de ler um bocadinho”.

Dos livros para a formação religiosa, conjugados com um “espírito livre e crítico”, foi buscar as “explicações” que não conseguiu encontrar na leitura da Bíblia.

“Tive uma educação católica e sempre fui à igreja, mas não foi por aí que aprendi. Aprendi lendo Leonardo Lopes, o Frei Carreira das Neves, o Frei Bento Domingues. Foi através deles que fiquei a perceber algumas coisas da Bíblia, porque quem a lê não percebe nada, precisei da interpretação desses bibliógrafos”, explicou, na conversa que decorreu no Museu Municipal de Valongo, a quem doou o presépio com mais de mil peças.

Solteira e sem filhos, ‘Mença’ contou “ter feito milhares de peças para máquinas de tricotar”, mas foi no croché que aprendeu, juntamente com as quatro irmãs, que materializou o sonho acalentado durante anos, antes de fazer algo maior que o presépio.

Para a empreitada dos últimos quatro anos contribuiu, segundo a artesã, o seu espírito “empreendedor” e o facto de “dormir poucas horas durante a noite”, respondendo não saber quantas horas dedicou, desde 2015, à criação do presépio.

“Devo ter para aqui umas artroses, pois de vez em quando doem-me os pulsos, mas eu não ligo a isso”, respondeu à pergunta da Lusa sobre se tanto croché não tinha deixado marcas, preferindo citar uma das suas “referências” do último século: “penso que era o Salvador Dali que dizia que as dores vão passar quando eu morrer, mas a minha obra vai ficar”.

No presépio exposto no auditório do museu estão representados vários momentos bíblicos: ‘Metáfora da criação’, ‘A revelação’, ‘A anunciação’, o ‘Nascimento de Cristo’, a ‘Última Ceia’ e a ‘Crucificação’, entre outros, mas não só, uma vez que ‘Mença’ fez questão de homenagear outras figuras, representando-as.

O físico Albert Einstein, o maestro Ludwig van Beethoven, o tenor Luciano Pavarotti, o filósofo Agostinho da Silva, o padre Américo, o Papa Francisco, o advogado e político Mahatma Gandhi, a madre Teresa de Calcutá, o astrônomo Galileu Galilei e os astronautas que chegaram à Lua são algumas das figuras em croché, numa exposição que mostra ainda a tradição local das “Mouriscadas e Bugiadas”.

“Tenho mais projetos. Até março [de 2020] acabarei outro presépio, em figuras bastantes maiores, inspirado em obras do escritor Mário Cesariny e do padre Américo”, disse sobre o “direito de continuar a sonhar aos 85 anos”.

E concluiu: “tem de ser assim, porque a minha cabeça não dá para ser de outra forma, aquilo em que eu empreender tenho de ir”.

No Museu Municipal de Valongo, na tradicional Exposição/Venda de Presépios que se vai estender até 06 de janeiro de 2020, estão patentes também trabalhos de artesãos concelhios e de alunos da Escola Básica Vallis Longus.

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