Guterres ainda aquém das expectativas, por Carlos Fino

Por Carlos Fino

Antonio Guterres. UN Photo/Mark Garten

Seis meses depois de ter tomado posse como secretário-geral das Nações Unidas, o balanço da atividade de António Guterres permanece aquém das expectativas.

Essa é, pelo menos, a percepção generalizada, a que o presidente da Associação de Correspondentes junto da ONU conferiu, há dias, chancela de verdade adquirida.

Em declarações à agência portuguesa de notícias Lusa, o jornalista sul-africano Sherwin Brice-Pease, correspondente da SABC News, disse que Guterres “ainda não encontrou o justo equilíbrio entre a descrição e a necessidade de assumir um papel mais activo”.

Não que Guterres tenha estado parado; pelo contrário – viajou já bastante e produziu os sons certos sobre uma série de questões internacionais – da Síria ao conflito Israel-Palestina, passando pela Ucrânia – não deixando também de estar atento ao que se passa em Portugal.

Por outro lado, logo que tomou posse, o novo secretário-geral nomeou três mulheres para cargos de alto nível, começando assim a pôr em prática um dos principais lemas da sua campanha – instituir maior paridade de género na estrutura dirigente da ONU.

O antigo primeiro ministro português também avançou no quesito reforma institucional, reconfigurando o seu gabinete e avançando com uma série de propostas para tornar as Nações Unidas uma organização mais eficaz.

Tudo consubstanciado na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – documento ambicioso que visa obter “resultados tangíveis para as pessoas” em termos de desenvolvimento económico, defesa do meio ambiente, proteção contra a exploração sexual e luta anti-terrorista a nível global.

A preocupação com as pessoas tem sido aliás uma nota distintiva de Guterres. “Ele não tem hesitado em falar na necessidade de lidar com as crises, focando-se na proteção das pessoas em situações de conflito. Nesse sentido, tem sido um secretário-geral mais visível do que o seu antecessor” – disse Alistair Edgar, diretor-executivo do Conselho Académico do Sistema das Nações Unidas.

ALGUMAS FALHAS APONTADAS

Organizações de direitos humanos prezam em geral a atividade de Guterres, embora assinalem também algumas falhas.

Para a antiga jornalista Sherine Tadros, diretora do escritório da Amnistia Internacional junto da ONU, por exemplo, Guterres foi inexplicavelmente omisso, nos primeiros meses, sobre a guerra do Iémen: “Do que está ele à espera para pressionar a Arábia Saudita, a coligação [árabe apoiada pelos EUA] para parar esta guerra? O que está ele a fazer para mediar entre os huthis (rebeldes) e os sauditas? Não vemos esforços”, afirmou.

Tadros criticou também a pouca assertividade de Guterres na questão dos colonatos israelitas em Gaza: “Em vez de apresentar um relatório escrito sobre a falta de aplicação da resolução da ONU por parte de Israel nesta matéria, o secretário-geral limitou-se a mandar um dos seus enviados fazer um update oral – sem nada escrito – aos membros do Conselho de Segurança”.

Esta omissão em questões mais quentes e controversas talvez explique a sensação generalizada de desempenho aquém das expectativas, a par de uma relativamente reduzida presença mediática, tanto mais intrigante quanto é certo que Guterres é profundo conhecedor dos dossiers, expressa-se fluentemente em inglês e tem bom relacionamento com os jornalistas, ou seja, estando no cargo que está, possui todas as condições para uma intervenção mais ativa na cena internacional.

FACTOR TRUMP IMPÕE CAUTELA REDOBRADA

A atitude pouco amistosa da administração Trump para com a ONU, refletindo um velho estado de espírito de uma vasta corrente dentro do partido republicano, pode explicar o extremo cuidado de Guterres em não assumir até agora um papel mais ativo, por forma a evitar consequências negativas para a ONU em termos políticos e orçamentais.

Quando, logo no início do ano, o novo secretário-geral tentou nomear um responsável palestino para um lugar numa agência da ONU, a proposta foi liminarmente rejeitada pela embaixadora americana nas Nações Unidas.

Esta primeira experiência negativa de Guterres, que é um homem de consensos, parece ter provocado um choque de que ainda se não refez, ditando-lhe uma cautela redobrada, que se traduz numa menor exposição mediática, a qual, por sua vez, acentua a ideia de desempenho aquém das expectativas.

Pela sua competência, dedicação e empenho, Guterres merece entretanto que lhe seja dado o benefício da dúvida quanto à possibilidade de vir ainda ao encontro daquilo que dele se espera(va).

Bastará para isso que assuma com mais decisão o que parece ter sido desde sempre a sua vocação manifesta e que faz dele aliás the right man in the right place – dar voz a consensos de humanidade universais, mesmo que para isso tenha que enfrentar algumas críticas e pressões.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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