Empréstimo do coração de D. Pedro é eco da ditadura militar no Brasil – Laurentino Gomes

Da Redação com Lusa

O historiador Laurentino Gomes considerou que o empréstimo do coração de D. Pedro, solicitado pelo Governo brasileiro para celebrar os 200 anos da Independência do país sul-americano é um eco da ditadura militar.

Falando sobre o pedido de trasladação do órgão – guardado na Irmandade da Igreja da Lapa, no Porto – para as comemorações do bicentenário, o historiador brasileiro e autor de livros de grande sucesso (1808, 1822 e 1889) e da trilogia Escravidão lembrou que o coração ficou preservado em Portugal a pedido do antigo monarca, conhecido como D. Pedro I do Brasil e D. Pedro IV em Portugal, que conduziu o país, antiga colônia portuguesa, à independência e cujo corpo se encontra na cidade de São Paulo.

“O coração do D. Pedro é preservado em condições muito delicadas, lá na igreja da Lapa, no Porto, e há um risco real. [O pedido de empréstimo] é um eco autoritário de uma ditadura, porque [na comemoração do aniversário dos 150 anos] era o auge da ditadura, em 1972, os militares trouxeram os restos mortais de D. Pedro para o Museu do Ipiranga”, frisou Gomes, que descreveu o presidente Bolsonaro de “adepto da ditadura”.

O executivo da Câmara do Porto vota na segunda-feira autorizar a transladação temporária do coração de D. Pedro para o Brasil no âmbito das comemorações do bicentenário da independência daquele país.

Na proposta, o presidente da câmara, Rui Moreira, assinala que o município pretende autorizar a transladação temporária do órgão através da celebração de um contrato de comodato a celebrar com o Governo brasileiro.

Para o historiador brasileiro, porém, esta trasladação “vai ser útil para a propaganda ‘bolsonarista’ e isto é uma pena porque é um desrespeito à memória do próprio D. Pedro”.

“Eu sinto o seguinte, esse bicentenário ainda não pegou no Brasil exatamente por culpa do Bolsonaro, porque ele está se apropriado de uma comemoração com uma linguagem que roça o fascismo de [Benito] Mussolini”, acrescentou.

Laurentino Gomes, que no ano passado disse à Lusa que Portugal deveria pedir perdão ao Brasil pela escravização dos africanos e acabou ameaçado de morte por portugueses nas redes sociais após desta declaração, lançou recentemente o terceiro volume da trilogia Escravidão, no qual relata como foi a escravização de africanos e afrodescendentes no período da Independência do Brasil (1822) até à Lei Áurea de 13 de maio de 1888, quando os cativos foram finalmente libertados na sua totalidade.

“Neste último volume, o que mais me impressionou durante a pesquisa escrita é como o Brasil resistiu obstinadamente a acabar com o tráfico de africanos escravizados, só fez isso em 1850, foi o último país da América a tomar essa providência. E, depois, acabar com a própria escravidão com a lei Áurea”, frisou.

“Todos os ciclos econômicos, toda a riqueza brasileira, desde a chegada dos portugueses à Baía em 1500, até ao final do século XIX, foram construídos com mão-de-obra escravizada”, acrescentou.

O historiador explicou que este trabalho lhe permitiu perceber que o Brasil acabou com a escravidão, mas não a herança da escravidão já que os governantes que se seguiram no país independente não deram terras, trabalho, renda, moradia, educação ou oportunidades para ex-escravizados negros e seus descendentes, que até hoje compõem a grande parte da população pobre do país.

“A escravidão criou no Brasil uma sociedade de castas que permanece até hoje, uma sociedade desigual, injusta, em que as pessoas se tratam de forma diferente devido a uma ideologia escravista, que se convertem numa ideologia racista”, frisou.

“Todos os dias, todo o final de semana em nossos estádios [de futebol], uma pessoa entra no ‘shopping center’ é discriminada, é tratada de forma diferente em razão da cor da pele. O Brasil é um país segregado na paisagem, nos indicadores sociais, no comportamento. Existem relações escravistas hoje no Brasil”, concluiu.

Pronto para independência

Laurentino Gomes considerou que o Brasil não estava pronto para independência de Portugal em 1822 e este processo só aconteceu devido a pressões vindas das cortes constituintes portuguesas contra D. Pedro.

“O curioso é que pela ação de circunstâncias, acasos e muita sorte o Brasil foi se viabilizando. Eu diria, e isto é uma tese do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que quem realmente fez a Independência do Brasil foram os portugueses”, frisou gomes, autor do livro ‘bestseller’ “1822”.

“O Brasil não estava pronto para a independência, mas como as divergências em Portugal se tornaram tão grandes com a revolução liberal do Porto, a convocação das cortes constituintes e de uma guerra civil entre ‘miguelistas’ e ‘pedristas’ e dali [uma guerra entre] liberais e absolutistas, o Brasil acabou por ser obrigado a optar por uma via, pela independência, pela rutura total”, acrescentou.

O historiador brasileiro explicou que a sorte, uma série de circunstâncias, algumas insólitas, colaboraram para a formação do país unificado que se tornou o Brasil.

“O Brasil de 1821 e 1822 tinha muita chance [hipótese] de dar errado. D. João VI depois de voltar para Lisboa, em 1821, raspou os cofres públicos depois e levou os recursos embora. Então, o Brasil estava falido. A imensa maioria da população era pobre, analfabeta, escrava, vivia isoladamente no campo, sem as mínimas condições de se mobilizar para a luta da independência, embora isto depois tenha acontecido”, salientou.

O futuro país não tinha armas, não tinha Exército, não tinha marinha e estava cheio de divergências entre republicanos monarquistas, federalistas, centralistas, constitucionalistas e partidários de uma monarquia absoluta, ou seja, estava internamente dividido.

Portanto, Gomes avaliou que a hipótese maior na altura “era de o Brasil se fragmentar em três ou quatro Repúblicas independentes como aconteceu com a América espanhola. Foi a permanência da corte [no Brasil] e depois a sua continuidade com o D. Pedro I ou D. Pedro IV de Portugal, que manteve [o Brasil] um império unido”.

No livro “1822”, o historiador conta que a confusão interna foi superada pelo medo da elite rural escravocrata brasileira, que apoiou D. Pedro na declaração de independência ocorrida num episódio posteriormente mitificado para criar uma versão sobre a origem do Brasil ligada aos símbolos da tradição europeia heroica, que não é verdadeira, mas até hoje se mantém.

O episódio no Brasil chamado de “grito da Independência ou grito do Ipiranga” ocorreu em 07 de setembro de 1822, quando, numa viagem entre as cidades de Santos e São Paulo, D. Pedro, sofrendo de distúrbios intestinais, recebeu correspondências relatando o envio de soldados portugueses para a Baía a ameaças de prisão contra si em Portugal.

Na altura, o príncipe terá dito, num momento de raiva, que as cortes portuguesas o perseguiam, chamavam-no de rapazinho e de brasileiro, e portanto, estavam quebradas as relações do Brasil com a metrópole.

Portanto, a cena mítica do grito do Ipiranga de “independência ou morte” não ocorreu da maneira como é conhecida e a ruptura concretizou-se devido a pressões em Portugal contra o futuro imperador brasileiro que viu o seu reinado apoiado pelas elites brasileiras conservadoras que o consideraram um mal menor, disse.

“Uma possibilidade que assustava muita elite brasileira era de uma guerra étnica, porque os escravos eram a maioria e se houvesse uma guerra republicana, eles [escravos] seriam mobilizados para uma guerra e estes escravos armados poderiam reivindicar direitos e trucidar os brancos, como aconteceu no Haiti em 1791 e 1792”, relatou o historiador.

“Então, diante dessa soma de medos, ou seja, do medo de uma guerra civil republicana ou de uma guerra étnica, a aristocracia agrária rural brasileira optou por uma rutura conservadora. Manteve o herdeiro de Portugal no trono brasileiro, não fez reforma agrária, não acabou com a escravidão, não alfabetizou as pessoas, não investiu em educação e isto levou ao Brasil que nós temos hoje”, completou.

Laurentino Gomes considerou que atualmente a figura de D. Pedro é vista pelos historiadores contemporâneos num ótica mais autoritária no Brasil, quase como um ditador que impôs a sua vontade, enquanto em Portugal ele é visto como um herói liberal, embora a sua história também desperte controvérsia no país.

“São visões diferentes. Acho que o D. Pedro I [ou D. Pedro IV em Portugal] é muito simbólico a respeito disso. Eu sinto que em Portugal, por exemplo, há uma sensação de orfandade, e o D. João VI é hoje vilipendiado e culpado por ter abandonado a metrópole e vindo para o Brasil porque ali começa o processo de independência. E começa o desmoronar do Império ultramarino de Portugal”, avaliou o historiador brasileiro.

“Sinto que há uma sensação de orfandade para os portugueses em relação ao Brasil. As divergências da época foram muito grandes. Houve uma campanha contra brasileiros em Portugal durante as cortes constituintes e uma campanha horrorosa contra os portugueses no Brasil no final do primeiro reinado. Houve um episódio traumático que foi a noite das garrafadas em que portugueses acusados de conspirar contra a independência brasileira foram perseguidos nas ruas e golpes de garrafas quebradas”, referiu.

Laurentino Gomes concluiu que um eco daquelas divergências “ainda permanece em manifestações de preconceito contra brasileiros em Portugal e contra portugueses no Brasil”, numa altura em que é preciso “construir pontes” e estar “mais próximos do que nunca”.

2 Comments

  1. Brasileiros de bem discordam dessa reportagem.

    O Bicentenário é um evento importante ao país. Não é de um presidente, mas como presidente e representante nacional, cabe aos brasileiros a comemoração, independente de que esteja a frente. Para frente Brasil!

    1. A ‘Independência’ do Brasil. que deveria ser chamada de Separação, foi na realidade um golpe de estado fomentado por traidores tanto no então Reino do Brasil quanto no Reino de Portugal, insatisfeitos por ocasião das ‘Cortes’ (que eram na verdade uma constituinte, sem valor régio) provenientes da Revolução do Porto. Não há o que comemorar mas sim a lamentar pelo desfecho histórico que só prejudicou a ambos e só beneficiou a Coroa Britânica e aos conspiradores d’aquém e d’além mar.

      Relativamente ao Estoriador Laurentino Gomes, sem comentários.

      Aos que buscam um Historiador, busquem pelo PROFESSOR MARCELO ANDRADE no YouTube, com três livros publicados recentemente sobre os Impérios Coloniais e a o evento de 1822.
      E é sempre pertinente lembrar o saudoso JOSÉ HERMANO SARAIVA, cujo falecimento completa 10 anos no próximo dia 20/Julho.

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