Crônica: O Enigmático Homem do Apito, por Carlos Fino

Morfeu, deus grego dos sonhos, na visão de Jean-Bernard Restout (1732/1797)

Por Carlos Fino

Dele temos todos, aqui no bairro, uma imagem fugaz. Noite após noite, em geral quando já toda a gente se recolheu a penates, mais o pressentimos do que propriamente o vemos.

Nunca ninguém lhe viu cara a cara nem com ele chegou à fala, mas todos garantem que ele existe e está activo, uma vez que deixa, como identificação, a par do barulho comum da moto em que se desloca, um rasto inconfundível – um apito soprado a intervalos regulares – fiiiii, fiiiii, fiiiiii -, avisando que está passando e se mantém vigilante…

É o nosso guarda-nocturno – personagem invisível encarregada de nos tranquilizar antes de cairmos no sono.

Deveria haver, algures, um registo, uma forma de pagamento, um recibo, algum dos vizinhos que tratasse disso e depois dividisse a despesa entre todos. Mas, não – ninguém tem esse encargo, não há nenhum responsável e também ninguém aparece a cobrar nada…

O personagem é tão esquivo, que já me interroguei se de facto existirá – como asseguram os meus vizinhos – ou se estaremos perante uma alucinação colectiva, um qualquer enigmático fenómeno psico-somático, em que o medo e a insegurança de cada um se juntassem para produzir uma realidade virtual: um mítico anjo da guarda para nos dizer, noite após noite, que esqueçamos, por uma horas que seja, os elevados índices de criminalidade, os repetidos assaltos e sequestros à mão armada, os roubos e a violência, e no entreguemos sem receios nos braços de Morfeu.

Outra hipótese, mais realista, é que se trate de algum estranho benfeitor da Humanidade, um solitário radical, daqueles que enviam cartas a si próprios, o qual, por sua própria conta e risco, resolveu assumir a caridosa tarefa de nos incutir uma dose diária de tranquilidade.

O Rio de Janeiro foi tomado pelo crime? A corrupção impera? A política virou um jogo pérfido e vazio em que todos ou quase se equivalem? As cadeias estão a abarrotar? A insegurança cresce, na medida em que a polícia não resolve a grande maioria dos casos? Calma! Nem tudo está perdido. Lá fora, sem que ninguém o tenha chamado nem contratado, ainda persiste um cavaleiro solitário do bem que nos permite dormir sossegados.

Com a vantagem, como ninguém o conhece, de nele cada um poder projetar as suas preferências políticas, agora interditadas no grupo de vizinhos do Whatsapp para que os ódios mútuos não nos impeçam de congregar esforços para consertar a calçada ou pressionar a administração do bairro a tratar da canalização do esgoto…

Assim, esse cavaleiro da noite tanto pode ser um partidário de Lula, daqueles mais de 30% que ainda sonham com o regresso do PT e acham que “o afastamento da Dilma foi um golpe”, como um simpatizante das medidas liberais de Temer, que prometem “colocar, finalmente, o país nos trilhos” e querem é ver Lula na cadeia…

Seja como for, uma coisa é certa – enquanto este enigmático cavaleiro solitário, real ou imaginado, for deixando no ar o seu fiiii, fiiiii, fiiii, como quem diz “estou aqui e estou de olho….”, podemos dormir descansados: afinal, ainda há alguma ordem e portanto ainda pode haver esperança.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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