Presidente do Timor conta episódios de livro que escreve em “homenagem a Portugal”

Da Redação com Lusa

O chefe de Estado de Timor-Leste, José Ramos-Horta, revelou episódios da resistência timorense no estrangeiro que tenciona incluir num livro de “homenagem a Portugal”, entre os quais uma conversa com o antigo Presidente norte-americano Bill Clinton.

José Ramos-Horta, que se encontra em Portugal em visita de Estado, falava perante o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, na apresentação do livro “Testemunhos de Quatro Anos de Presença de Forças Nacionais Destacadas Lusas em Terras do Sol Nascente (2000-2004)”, na Academia Militar, na Amadora, distrito de Lisboa.

Numa intervenção improvisada, depois de referir que não contava falar nesta ocasião, o Prêmio Nobel da Paz recordou tempos que passou no estrangeiro durante a ocupação indonésia e apoios que a resistência timorense foi conseguindo com ajuda da diplomacia portuguesa.

“Quando estive com Bill Clinton ele disse-me assim: a pessoa que mais me convenceu, que mais me tocou foi António Guterres [então primeiro-ministro de Portugal]”, relatou.

Segundo Ramos-Horta, anos mais tarde “António Guterres confirmou que essa conversa teve lugar”, que “estava no Porto, ia no carro, e chegou o telefonema”, em que disse a Bill Clinton: “Senhor Presidente, se não se juntar a nós nisto não posso conter o meu povo, teremos de sair do Kosovo”.

“E Tony Blair? Eu desconfiava muito dos ingleses. E do lado americano disseram: não, Tony Blair estava connosco desde o começo, por causa do Kosovo. Eu não direi mais, porque talvez fará parte de um livro que eu estou a escrever”, acrescentou.

O Presidente da República de Timor-Leste declarou que está “a escrever um livro sobre o papel de Portugal na questão de Timor-Leste”, projeto que entretanto abrandou devido ao seu recente regresso a funções políticas.

“E porquê o livro? Agradecer, registar na história o papel extraordinário de Portugal, da diplomacia portuguesa. Mas também como um livro de estudo, de lição sobre diplomacia”, justificou.

“Para mim é uma homenagem a Portugal. A maneira como Portugal geriu toda a questão de Timor ao longo de anos e como pela via da diplomacia ganhámos esta batalha. Eu digo ganhamos, nós todos ganhamos, a comunidade internacional, mas o papel de Portugal foi fulcral. Contei uns pequenos episódios, mas há muito mais do que isso”, afirmou.

Ramos-Horta mencionou também uma conversa com o antigo Presidente da Coreia do Sul, Kim Dae-jung, sobre a divisão de esforços com os Estados Unidos da América nos contatos sobre a questão timorense no contexto da cimeira da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) de 1999 em Auckland, Nova Zelândia.

“Kim Dae-jung contou-me, na Coreia do Sul, que telefonou a Jiang Zemin [então Presidente da China] e Jiang Zemin disse-lhe: se você levanta a questão de Timor na cimeira da APEC eu abandono a reunião, foi a resposta de Jiang Zemin. E porquê? Obviamente a China, e alguns outros países, não quer um precedente criado”, narrou.

O chefe de Estado timorense elogiou a diplomacia portuguesa, defendendo que não deve ser subestimada e que ganha sempre que entra numa campanha na ONU.

Ramos-Horta deu um exemplo de como contribuiu para uma dessas campanhas, para o Conselho de Segurança da ONU, há alguns anos, quando João Gomes Cravinho, atual ministro, era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiro, à conversa com o Presidente do Kiribati.

“Os outros candidatos eram a Alemanha e o Canadá. Eu disse: meu irmão, imagina que hoje chegas a Berlim, tentas estar com a Merkel, está demasiado ocupada; vais ao Canadá, tentas estar com o primeiro-ministro, também está muito ocupado; então chegas a Lisboa, no aeroporto ficam confusos, nunca ouviram falar de Kiribati, ligam ao ministro dos Negócios Estrangeiros e imediatamente te vão buscar ao aeroporto e nessa tarde estás a jantar com o Presidente de Portugal”, contou.

Brasil e Rússia

Nesta visita a Portugal, Ramos-Horta também afirmou que Lula da Silva deve combater a polarização, considerando-o o líder ideal para pacificar o Brasil, mas também ajudar na resolução de tensões internacionais, como na Ucrânia.

“Eu não conheço o Presidente [Jair] Bolsonaro e nem a equipe dele. Espero que na derrota ele mostre que é maior que do que as pessoas pensam, um maior estadista do que nós todos pensávamos e tudo faça para que a transição seja pacífica”, afirmou, em entrevista à Lusa José Ramos-Horta, de visita a Lisboa.

O Presidente timorense elogiou o vencedor das eleições brasileiras Luiz Inácio Lula da Silva e a sua capacidade para estabilizar o Brasil.

“O Presidente Lula sempre revelou a essa sua magnanimidade, esse seu sentido de pragmatismo”, afirmou Ramos-Horta, lembrando o percurso do político na presidência brasileira: “Quando foi eleito primeira vez e antes ser eleito primeira vez, há 20 anos, havia receios no setor empresarial e financeiro do Brasil e Washington, que temiam aquele background radical de sindicalista”.

Nos mandatos de Lula, “o Brasil e a economia brasileira foi à estratosfera, pagou as dívidas ao FMI” [Fundo Monetário Internacional] e promoveu a “redução dramática da pobreza”, disse Ramos-Horta.

Agora e depois das eleições de domingo, “o pior que pode acontecer” seriam políticas de “discriminação e exclusão ou perseguição”, como “fizeram ao Lula”, disse Ramos-Horta sobre as acusações judiciais de que foi alvo o Presidente eleito.

“Lula não vai responder de igual maneira” e “vai abraçar os outros”, incluindo os opositores, mas também trará o país à cena internacional com novo fôlego, num contexto de várias crises, como é o caso de Myanmar [antiga Birmânia], que “está numa situação catastrófica”, ou o mar do Sul da China, “excessivamente militarizado por todos” e onde a situação de Taiwan face à China “pode levar a imprudências”, porque os “conflitos às vezes acontecem por acidente”.

“Estive com o engenheiro António Guterres [ONU], há mais de um mês, e via-se na cara dele” que estava “muito preocupado, pessimista em relação à situação da evolução da guerra da Ucrânia”.

Isso constitui uma oportunidade diplomática para o Brasil, que integra o bloco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) considerou.

“Com Lula, o Brasil vai ter que primeiro começar o diálogo com os seus vizinhos, com os Estados Unidos, restaurar as relações com a União Europeia e, em particular, com países como a França e Inglaterra, que estão no Conselho de Segurança”, mas também “falar com [o Presidente russo, Vladimir] Putin, mobilizar [o Presidente Recep Tayyip] Erdogan da Turquia, mobilizar a Indonésia, ou o [primeiro-ministro, Narendra] Modi da Índia, para tentar desarmar a situação na Ucrânia e Rússia”, defendeu o Presidente timorense, que reconheceu as dificuldades de um acordo.

O mundo deve insistir “pelo menos num cessar-fogo” no terreno, sem vincular as partes a cedências permanentes, sem mais “movimentação de forças de um lado ou do outro, e isto de imediato permitiria, com uma pausa no conflito, normalizar a situação das exportações e importações”, propôs Ramos-Horta.

“Isto, claro, na minha apreciação de que há algum bom senso no Putin, mas eu creio que Putin, se tiver incentivos para recuar, ele recuará. Porque não vai ganhar essa guerra, ele está a arruinar a Rússia”, disse Ramos-Horta.

Tudo o que Vladimir Putin “conseguiu fazer na Rússia ao longo do seu mandato está agora sendo destruído”, sublinhou. No entanto, é “preciso dar a Putin formas de recuar” e, para tal, é necessário que os ucranianos não insistam num maior envolvimento das forças ocidentais.

O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, não pode achar que vai “ganhar esta guerra com um maior envolvimento da NATO”, porque “não vai”, apenas irá “destruir mais ainda a Ucrânia e a Rússia”.

Por isso, pelo papel de diálogo que tem, Lula tem condições para “trazer as partes” ao diálogo, incluindo a China. “O Brasil pode fazê-lo e isto ajudará um novo eixo mundial, que já não gira apenas em torno dos Estados Unidos ou da Rússia ou da China”.

“O Brasil com a Índia, com a África do Sul, com a Indonésia”, a Coreia do Sul ou outros, podem criar “um novo eixo multipolar, de vários países em várias regiões do mundo, que são grandes economias e que representam a maior parte da população mundial”, afirmou Ramos-Horta.

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