Em Lisboa, emissão de atestados de residência “em massa” está sob investigação criminal

Da Redação com Lusa

A emissão de atestados de residência “em massa” em freguesias de Lisboa, inclusive em Arroios, onde a junta refere existirem redes de imigração ilegal, é um problema “muito difícil” de resolver por parte das autarquias, estando sob investigação criminal.

Questionado pela agência Lusa sobre se está a investigar a emissão, por parte de juntas de freguesia de Lisboa, de atestados de residência verdadeiros com dados falsos para legalização de imigrantes em Portugal, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) disse apenas que “não presta informações concretas acerca das investigações em curso, as quais são tuteladas pelo Ministério Público”.

“Enquanto órgão de polícia criminal, o SEF atua no quadro da delegação de competências de investigação e sob a orientação dos magistrados titulares dos inquéritos”, acrescentou, sem indicar quais os processos existentes relativos à emissão de atestados de residência em Lisboa.

Em 12 de agosto, o jornal Expresso noticiou que o SEF está a investigar pelo menos três juntas de freguesia do concelho “devido a esquemas fraudulentos para a obtenção de autorização de residência para imigrantes”, revelando que “há moradas com mais de 100 atestados emitidos”.

Em resposta à Lusa, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), através dos vários gabinetes especializados do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM) de Lisboa, referiu que “existem algumas dificuldades” por parte dos cidadãos no cumprimento dos requisitos para a obtenção/renovação de autorização residencial em Portugal, mas “não tem conhecimento das situações alegadamente investigadas”.

A Junta de Freguesia de Arroios, uma das autarquias mencionadas pela mesma fonte, afirmou à Lusa que “não tem, oficialmente, conhecimento ou qualquer notificação” da existência de uma investigação do SEF, mas considerou que, “a existir, será muito bem-vinda”, e mostrou-se disponível para colaborar.

O atual executivo de Arroios, presidido por Madalena Natividade (independente eleita pela coligação PSD/CDS-PP/MPT/PPM/Aliança), informou que quando tomou posse, em outubro de 2021, foi confrontado com “muitos atestados emitidos em massa, com base em fotocópias e papéis rasurados”, e solicitou uma reunião com o SEF para discussão do problema, que decorreu no fim do ano passado.

Segundo os números tornados públicos pelo anterior executivo de Arroios, sob a presidência de Margarida Martins (PS), no ano de 2019 chegaram a existir 10.000 novos atestados passados em 10 meses – “embora não fossem todos atestados de residência, a média deste número implicaria um atestado emitido a cada nove minutos”, referiu o gabinete de comunicação desta junta, acrescentando que a situação “não é compatível com as necessidades evidentes de verificação dos dados”.

Para responder ao problema, o atual executivo de Arroios decidiu, “de imediato”, alterar os procedimentos de emissão de atestados de residência, “obrigando à presença física do requerente e das suas duas testemunhas [recenseadas na freguesia], à consulta de documentos de identificação para comprovar as assinaturas – que passaram a ter de ser feitas no momento e na presença dos técnicos da freguesia -, além de os documentos terem de ser os originais emitidos pela freguesia e não cópias”.

“O resultado do apertar destas medidas de segurança fez com que o número de atestados solicitados tivesse descido para cerca de 20 documentos/dia”, expôs a Junta de Freguesia de Arroios, informando que cada atestado, independentemente da sua finalidade, custa 10 euros ao requerente.

Apesar das medidas, o executivo afirmou que “é muito difícil” para uma freguesia, com escassos meios de intervenção, recusar a emissão do atestado de residência a qualquer pessoa que, legalmente, cumpra todos os requisitos materiais e apresente a documentação necessária.

“Ouvimos falar de redes [de auxílio à imigração ilegal] que operam na freguesia, que ‘vendem’ testemunhas e o preenchimento dos papéis de residência, por valores que poderão ir até os 100 euros”, denunciou a autarquia, indicando que, em relação às proveniências dos pedidos de atestados de residência, a maior parte é para cidadãos provenientes do Bangladesh, Nepal e Índia. Segundo esta junta, “muitos dos atestados podem servir apenas para a entrada legal na Europa”, em que, logo a seguir à obtenção de atestado de residência, os cidadãos se deslocarão para fora de Lisboa e outros países.

Para a freguesia de Arroios, este é também “um problema de segurança” para o território e para a comunidade, pelo que foi pedida, em 11 de abril, uma reunião ao ministro da Administração Interna: “Até hoje apenas obtivemos a resposta de que ainda não existiu agenda para reunir”.

Outra das juntas investigadas é Santa Maria Maior, presidida por Miguel Coelho (PS), que disse à Lusa que “tem conhecimento da investigação em curso e está a colaborar com o SEF, fornecendo toda a informação até ao momento solicitada”.

O gabinete de comunicação da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior adiantou que “nos últimos dois anos não foi emitido qualquer atestado de residência com recurso à figura das duas testemunhas recenseadas na freguesia, apesar de estar previsto na lei”, e ressalvou que a forma de atuação dos serviços “corresponde estritamente ao que está previsto na legislação em vigor”, sem explicar qual o procedimento que está a ser adotado.

Questionada sobre a existência de investigações acerca da emissão de atestados na Penha de França, a junta, presidida por Sofia Oliveira Dias (PS), informou apenas, sem se referir a órgãos de investigação em concreto, que “foi disponibilizada toda a colaboração relativamente a este tema” e referiu que foram introduzidos “novos mecanismos internos relativamente à emissão de atestados”.

Investigação tardia

A associação de moradores Vizinhos de Arroios, em Lisboa, defendeu hoje que a investigação sobre atestados de residência “é oportuna e peca por tardia”, enquanto a Renovar a Mouraria defendeu o reforço do controle de esquemas de imigração ilegal.

“Os atestados verdadeiros com dados falsos são um fato. Existem há vários anos, tendo-se agravado a situação desde 2016”, afirmou à Lusa o presidente da associação Vizinhos de Arroios, Luís Castro, que teve conhecimento da atual investigação criminal através da comunicação social.

A associação Vizinhos de Arroios considerou que “é altamente provável” a existência de redes organizadas e até de situações pontuais para a obtenção irregular de atestados de residência, “com base na observação diária à porta dos polos de atendimento da Junta de Freguesia de Arroios (em S. Jorge de Arroios e Anjos)”.

Luís Castro disse ainda que há “um crescimento efetivo da população imigrante e/ou migrante e/ou requerente de asilo na freguesia”, conclusão que resulta de testemunhos de moradores sobre a “presença desta população em prédios habitacionais, que até recentemente não registavam tantos movimentos de pessoas”.

Neste âmbito, a associação recebeu “algumas queixas” de sobrelotação de apartamentos por parte de moradores de prédios e de alojamento local e/ou hostels que acabam por “impactar negativamente nas relações de vizinhança”, esperando que na próxima sexta-feira, 02 de setembro, o executivo de Arroios, na reunião pública, possa informar quantos atestados de residência foram emitidos até ao momento.

“Nas eleições autárquicas de 2021 e legislativas de 2022 os números referentes aos eleitores inscritos na freguesia eram, respetivamente, de 27.852 e 27.498, numa tendência clara de decréscimo demográfico eleitoral em contraciclo com o resultado do Censos de 2021, que atribui uma população à freguesia de Arroios de cerca de 33.000 pessoas”, indicou Luís Castro, estimando que a atual população residente neste território seja de cerca 48.000 cidadãos.

Sobre os prédios referenciados pela população como centros de domicílio para efeitos de residência, o representante apontou a Rua Passos Manuel, desconhecendo a dimensão dos números em causa, mas acreditando que “possam existir mais locais” e recebendo sem surpresa a informação, referida no Expresso, de prédios de três e quatro andares com 1.400 residentes atestados pela junta.

Para a associação, “a facilidade com que é atribuída a nacionalidade e a ineficácia da fiscalização promovem e incentivam a criação ou estabelecimento de redes criminosas associadas ao tráfico de pessoas”.

Sobre o procedimento na emissão de atestados de residência, Luís Castro considerou que o modelo existente “traz vantagens para todos os envolvidos”, porque “as juntas ganham dinheiro com a sua emissão e conseguem arrecadar receita de que tanto precisam; algumas das testemunhas (aquelas que são recorrentes) também ganham dinheiro com a disponibilização da sua assinatura nos documentos a certificar; e os intermediários fazem disto um negócio florescente”.

“Os beneficiários ou requerentes dos atestados acabam por pagar para contornar a burocracia ou tempo de espera ou qualquer incômodo que venham a ter. Os preços que ouvimos estarem a ser praticados vão dos 10 euros até aos 100 euros por certificado”, disse.

A trabalhar há 14 anos no bairro da Mouraria, na freguesia de Santa Maria Maior, a associação Renovar a Mouraria, responsável pelo Centro Local de Apoio ao Imigrante, integrado na rede nacional de centros promovida pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), e que ajuda, de forma gratuita, os imigrantes na documentação para processos de regularização, disse à Lusa não ter registo de qualquer denúncia sobre a emissão de atestados de residência.

“No desenvolvimento do nosso trabalho diário, não identificámos ou tivemos conhecimento de nenhuma situação de certificados de residência com dados falsos”, assegurou a presidente, Filipa Bolotinha, recusando a ideia de um crescimento exponencial de migrantes neste território de Lisboa, inclusive porque não regista um aumento da procura dos seus serviços por parte dos moradores.

Repudiando esquemas que promovam a imigração ilícita e situações de desrespeito dos direitos humanos, Filipa Bolotinha defendeu “o reforço dos mecanismos de controlo de esquemas fraudulentos, que contribuem para o enriquecimento de alguns e prejudicam os imigrantes recém-chegados em situação de vulnerabilidade”.

“O que tentamos fazer todos os dias é precisamente apoiar os imigrantes no seu processo de integração, a todos os níveis, de forma inteiramente gratuita e com vista a torná-los autônomos no seu processo e cidadãos plenos, conscientes dos seus direitos e deveres”, realçou.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: