Em Madrid, a Jornada deixou casas para carenciados. No Rio, um barco-hospital para a Amazônia

Da redação com Lusa

A única coisa que talvez se possa considerar um legado físico da JMJ de Madrid são dois blocos com 48 habitações para famílias carenciadas que a Arquidiocese de Madrid decidiu construir, posteriormente, com parte do dinheiro que sobrou. No Brasil, resultou “projeto do barco hospital, que agora já são três, nascendo justamente no Rio de Janeiro quando o papa visitou o hospital São Francisco”.

A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) na cidade brasileira do Rio de Janeiro realizou-se há uma década, deixou um legado imaterial na ‘cidade maravilhosa’ e levou cuidados de saúde até às zonas mais remotas da Amazônia.

Entre 22 e 28 de julho de 2013, com os braços sempre abertos do Cristo Redentor, o Rio de Janeiro acolheu mais de três milhões de pessoas para participarem na 28.ª jornada, num encontro que “marcou bastante a vida na cidade e deixou marcas bastante positivas”, recordou, em entrevista à agência Lusa, o cardeal Orani João Tempesta, arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro.

O cardeal recorda com “muito carinho os milhões de jovens no Rio de Janeiro que marcaram a cidade com a sua presença, com a sua alegria, com a sua generosidade, em todos os cantos da cidade” e que foram recebidos e acolhidos “com muita generosidade pelos cariocas”.

Orani João Tempesta, que também é presidente do Instituto Jornada Mundial da Juventude Rio de Janeiro, enfatizou que passados dez anos deste “entusiasmo da juventude”, ficou entranhado na cidade e em todos os que por lá passaram o “espírito de encontro, o espírito de fraternidade, alegria e o contágio do bem”.

“Poder abrir a sua casa para alguém que você não conhece é algo que fica na memória para sempre”, disse, revelando que muitos dos jovens que marcaram presença na JMJ tiveram diferentes destinos: uns casaram, outros tornaram-se padres.

Desta generosidade surgiu o alicerce para um projeto que viria a mudar a vida de milhares de pessoas nas áreas mais remotas da Amazónia brasileira.

Do dia 24 de julho de 2013, o papa Francisco foi ao Hospital São Francisco, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro para inaugurar o polo de atendimento de toxicodependentes.

Lá no Hospital, contou Orani João Tempesta, em conversa com a Lusa por telefone, Francisco “pediu para se dar uma atenção à Amazónia”.

Dessa conversa surgiu o “projeto do barco hospital, que agora já são três, nascendo justamente no Rio de Janeiro quando o papa visitou o hospital São Francisco”.

O Barco Hospital Papa Francisco na Providência de Deus foi inaugurado oficialmente em 17 de agosto de 2019 na cidade de Belém, estado do Pará, e atende mais de 1.000 comunidades ribeirinhas na região amazônica.

Esta embarcação, com 32 metros de extensão, conta com 20 tripulantes fixos e mais 10 voluntários. Tem uma estrutura com consultórios médicos, odontológicos, centro cirúrgico, sala oftalmológica completa, laboratório de análises, sala de medicação, sala de vacinação e leitos de enfermaria, além de equipamentos para diagnósticos, como raio-X digital, mamografia, ecocardiograma, ultrassom e eletrocardiograma. “Graças à jornada”, enfatizou.

Ainda assim, todo este legado dez anos depois foi fruto de muito trabalho e de algumas peripécias na organização da JMJ, lembrou o cardeal.

“Tivemos pouco tempo de organização”, disse, recordando que o papa Bento XVI queria que a JMJ fosse antes do Campeonato do Mundo de Futebol (2014) e das Olimpíadas (2016).

“Depois foi a mudança do papa”, disse, com a renuncia, em fevereiro desse ano, de Bento XVI.

“Muita coisa que tinha sido organizada com orientação do papa Bento XVI teve de se reorganizar segundo orientações da Santa Sé, de acordo com o papa Francisco”, naquela que foi, à data, a sua primeira viagem apostólica internacional, explicou o arcebispo.

A JMJ decorreu na época do inverno carioca e durante o evento muito dos planos tiveram que ser alterados de última hora.

Um deles, numa decisão anunciada pelo próprio Orani João Tempesta, foi a missa de encerramento, prevista para o Campo da Fé, em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e que foi transferida para a Praia de Copacabana, na Zona Sul, devido às fortes chuvas que atingiram a localidade que fica a cerca de 50 quilómetros de Copacabana e que transformaram o terreno em lama.

“Os jovens ajudaram a limpar tudo”, recordou, com orgulho.

Nesse dia, na famosa Praia de Copacabana, o papa Francisco não deixou de agradecer a resiliência dos jovens.

“Sempre ouvi dizer que os cariocas não gostam do frio e da chuva. Vocês estão mostrando que a vossa fé é mais forte que o frio e a chuva”, disse o papa Francisco.

As memórias dessa semana permanecem tão presentes que Orani João Tempesta enviou uma carta ao papa Francisco pela ocasião dos dez anos do evento no Rio de Janeiro.

“O papa respondeu com muita simpatia”, disse.

De acordo com a Vatican News, as palavras na carta do arcebispo transportaram “o coração e a mente” do papa “até aqueles dias vividos no meio da juventude do Brasil e do mundo reunida na ‘Cidade Maravilhosa'”.

Espanha

A JMJ de 2011, em Madrid, fez-se com 50 milhões de euros e terminou com um superávit que foi usado para construir 48 habitações para famílias carenciadas, o único legado físico do evento à cidade.

Em 2011, o contexto era de crise financeira, com medidas de austeridade por toda a Europa, incluindo em Espanha, onde nasceram movimentos como o “dos indignados”, de que sairiam partidos como o Podemos.

Além disso, no país havia então um governo socialista “pouco favorável à igreja” e “um movimento social muito anticristão”, recordou, em declarações à Lusa, o professor universitário Yago de la Cierva, que foi o diretor executivo da JMJ de Madrid.

O contexto do país e do mundo levaram a organização a optar por não ter dinheiro público na JMJ de 2011, que foi paga integralmente pelos peregrinos (31,5 milhões e euros) e pelos patrocínios de empresas privadas (16,5 milhões).

O orçamento da Jornada de Madrid, em que participaram cerca de 1,2 milhões de pessoas, acabou por ser maior do que o gasto real e, fechadas as contas, a JMJ de 2011 teve um superávit de 7 milhões, segundo Yago de La Cierva, professor numa das mais prestigiadas escolas de negócios do mundo, a IESE, que pertence à Universidade de Navarra e está ligada à Igreja Católica.

A origem e dimensão dos recursos, assim como, mais uma vez, o contexto económico e social, ditaram o tipo de JMJ que se organizou, em espaços públicos como a praça Cibeles, o parque do Retiro e o Passeio de Recoletos, no centro de Madrid, ou o aeródromo civil e militar Cuatro Vientos, nos arredores da cidade, que acolheu a vigília e a missa final.

Nestes espaços, sem necessidade de grandes intervenções preparatórias, foram montadas estruturas, como ‘stands’, confessionários, palcos ou serviços de apoio que foram imediatamente retirados após a JMJ.

“O que queríamos era incomodar o menos possível as pessoas e, portanto, quando ocupámos a praça Cibeles, ocupámo-la quatro ou cinco dias antes e, assim que terminaram os eventos, retirámos tudo. O mesmo aconteceu com o aeródromo de Cuatro Vientos, que tínhamos de devolver imediatamente para poder voltar a haver voos”, disse Yago de la Cierva.

Por isso, não existe hoje em Madrid uma construção, espaço ou monumento que lembre a realização da JMJ de 2011 ou associado à realização do evento.

Yago de la Cierva considerou, neste contexto, “uma ideia fantástica” e “muito positiva” o objetivo de a JMJ de Lisboa, através da câmara de Lisboa, deixar como legado à cidade um espaço que poderá no futuro acolher concertos e outros eventos.

“Nós não pudemos fazer isso”, sublinhou.

A única coisa que talvez se possa considerar um legado físico da JMJ de Madrid são dois blocos com 48 habitações para famílias carenciadas que a Arquidiocese de Madrid decidiu construir, posteriormente, com parte do dinheiro que sobrou.

O resto dos 7 milhões de euros de superávite foi usado, segundo Yago de la Cierva, para apoiar seminaristas e para a organização da JMJ seguinte, a do Rio de Janeiro, para onde foram enviados voluntários desde Espanha a quem foram pagas as viagens, a estadia e “um pequeno salário” para trabalharem no Brasil durante alguns meses.

Mas a JMJ de 2011 deixou outro “legado material”, uma injeção direta de 354,3 milhões de euros na economia espanhola, sobretudo na hotelaria e restauração, segundo um estudo da consultora PWC, encomendado após o evento pela Arquidiocese de Madrid.

Segundo o mesmo estudo, o Estado recolheu 28,3 milhões de euros em IVA (o imposto sobre o consumo) por causa da JMJ de Madrid, o que compensou os 15,5 milhões que perdeu com os benefícios fiscais que deu às empresas patrocinadoras.

Apesar de não ter contribuído com verbas para o orçamento da JMJ Madrid, o governo regional, o município e o próprio executivo de Espanha disponibilizaram a utilização de espaços públicos para os eventos e entregaram à organização as chaves de escolas para alojar peregrinos, entre outros apoios.

Houve ainda passes para transportes públicos e a necessidade de mobilizar meios de proteção civil e de segurança (como 10 mil polícias).

Yago de la Cierva destacou que apesar do momento político trabalhou “muito bem” e num “clima de colaboração magnífico”, por exemplo, com vários ministros do então governo espanhol, liderado por José Rodríguez Zapatero.

Quanto ao “legado espiritual”, o diretor da JMJ Madrid disse que, precisamente, aqueles foram “uns dias de muitíssimo diálogo social”.

“Havia muitos problemas políticos, de polarização, e esses foram uns dias de grande concórdia”, defendeu.

Depois, no ano de 2011 e no seguinte “houve também dados de muita melhoria na atividade espiritual da igreja” em Espanha: notou-se nos aumentos dos números de seminaristas, de crianças inscritas nas aulas de religião nas escolas públicas e privadas, de voluntários na Caritas e outras organizações católicas e de doações à igreja através do IRS.

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