Caso das gêmeas: Auditoria conclui que 1ª consulta foi pedida pela secretaria de Estado da Saúde

Mundo Lusíada
Com Lusa

A primeira consulta das gêmeas luso-brasileiras no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, ocorreu dia 05 de dezembro de 2019, altura em que estavam em funções na Secretaria de Estado da Saúde, António Sales e Jamila Madeira.

Segundo o relatório final da auditoria pedida pelo Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), a que a Lusa teve acesso, as duas meninas foram referenciadas (pedido de consulta) pelo secretário de Estado da Saúde.

De acordo com o documento, na primeira consulta, 05 de dezembro de 2019, estiveram presentes os tios e o pai das crianças, pois à data as gêmeas estavam internadas no Brasil.

O documento não refere o dia em que o pedido de primeira consulta foi efetuado, mas cita o registo clínico para concluir que “a consulta foi requisitada ‘pelo Secretario de Estado’ à direção de departamento”.

Este procedimento não cumpre com a legislação (portaria n.º147/2017) para a marcação de primeiras consultas da especialidade, segundo a qual a referenciação clínica deve ser efetuada a partir das unidades funcionais dos Agrupamentos de Centros de Saúde, de outros serviços hospitalares, da mesma instituição (intra-hospitalar) ou de instituições hospitalares distintas do SNS, a partir do Centro de Contacto do SNS, das unidades e equipas da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados ou de entidades externas ao SNS.

António Lacerda Sales e Jamila Madeira tomaram posse enquanto secretários de Estado da ministra Marta Temido em outubro de 2019. Antes disso, tinham estado na Secretaria de Estado da Saúde Francisco Ramos e Raquel Duarte.

Na audição de hoje na Comissão Parlamentar de Saúde, a presidente do Conselho de Administração do CHULN, Ana Paula Martins, foi questionada sobre quem teria solicitado a consulta, tendo respondido que a auditoria apenas apurou o que consta de documentos, esclarecendo: “O que não está escrito nós não sabemos”.

“Admito que outras auditorias e outras avaliações possam ter esse tipo de informação, por conterem declarações”, acrescentou.

O relatório refere ainda que não existem quaisquer campos na ficha de registo dos utentes, na aplicação Gestão Hospitalar, sobre a sua referenciação para primeira consulta da especialidade (à luz da legislação em vigor), apenas existindo essa menção no registo clínico.

“Caso não existisse seria de difícil rastreabilidade do processo”, referem os auditores, que recomendam, “em prol do reforço do controle interno na admissão de utentes à primeira consulta da especialidade”, que sejam incluídos campos na ficha de utente relativos a esta referência.

Na altura da primeira consulta, as meninas ainda tinham residência no Brasil, situação que o relatório diz ter mudado na antevéspera de natal, a 23 de dezembro de 2019, altura em que passaram a ter residência em Portugal (Lisboa).

Na audição de hoje na Assembleia da República, Ana Paula Martins, lembrou que a residência em Portugal é uma das exigências para monitorização do tratamento.

Dos 10 doentes com atrofia muscular espinhal tratados no CHULN com o medicamento Zolgensma, as duas gémeas eram as mais velhas (15 meses).

Sobre o tratamento propriamente dito, o relatório refere que o circuito de validação e aprovação dos utentes com Zolgensma foi cumprido, com as devidas autorizações (comissão de farmácia e terapêutica, conselho de administração e infarmed).

“Não foram detetados quaisquer desvios nos procedimentos de controle interno implementados”, refere.

Dos 10 doentes tratados no CHULN, sete obtiveram Autorização de Utilização Excecional (AUE) e apenas os três últimos estiveram abrangidos pela autorização de 14 de outubro de 2021 do Infarmed, quando o medicamento passou a ter financiamento público como nova opção terapêutica para as crianças com atrofia muscular espinhal tipo I.

Já o ex-secretário António Lacerda Sales, garantiu hoje que não marcou qualquer consulta no SNS, considerando que se continua no “campo das suspeições e indefinições”.

“Não marquei nenhuma consulta no SNS e, por isso, estou perfeitamente tranquilo relativamente a esta questão. Começaram por dizer que teria sido eu a marcar uma consulta, já perceberam que eu não marquei uma consulta, depois haveria um email e não apareceu nenhum email. Já pedi os documentos várias vezes e não aparece nenhum email. Agora aparece um telefonema, gostaria de ter documentos que confirmassem e comprovassem isso, porque senão continuamos no campo das suspeições e indefinições”, afirmou António Lacerda Sales, em declarações à rádio Antena 1.

Lacerda Sales sublinhou que Ana Paula Martins “nunca referiu a existência de qualquer favorecimento” e indicou que “todas as crianças para serem sujeitas à administração do medicamento têm de cumprir com requisitos legais, além de que foram os próprios médicos que acederam receber as crianças em consulta”.

O caso das duas gêmeas residentes no Brasil que adquiriram nacionalidade portuguesa e foram a Portugal receber, em 2020, o medicamento Zolgensma, com um custo total de quatro milhões de euros, foi divulgado pela TVI, em novembro, e está a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS).

Partidos

O deputado socialista Luís Soares, em declarações à Lusa, classificou como “audição importante” de Ana Paula Martins.

“Ficamos satisfeitos pela forma como conseguiu explicar, de forma factual e retirar uma certa suspeição que existia sobre o próprio hospital, sobre os médicos, sobre a própria intervenção do Governo, salientando que todos os casos foram tratados exatamente da mesma forma, no respeito pelos princípios que o hospital determinava”, afirmou.

O PS chamou também o ministro da Saúde, e aguardará agora pelos inquéritos em curso no IGAS e no Ministério Público.

Já o Chega anunciou hoje que vai propor uma comissão parlamentar de inquérito no início da próxima legislatura para esclarecer o caso, e averiguar se foi uma situação excepcional, apelando aos restantes partidos que votem favoravelmente.

“O Chega vai avançar no início da próxima legislatura com uma comissão parlamentar de inquérito a este caso porque entende que, agora, com a confirmação por parte da senhora presidente do Conselho de Administração, temos o processo decisório que fazia falta para saber que houve efetivamente uma interferência política abusiva”, afirmou o presidente do Chega, André Ventura, em declarações aos jornalistas no parlamento.

O Chega considera que “houve objetivamente um ato de abuso de poder e uma interferência abusiva do poder político no decurso do sistema de saúde” e defendeu que os partidos se devem comprometer com a instauração de uma comissão de inquérito, caso contrário o tema “contaminará toda a campanha eleitoral” para as legislativas antecipadas de março.

Ainda, o Chega vai propor que os pais das duas crianças luso-brasileiras sejam ouvidos na Assembleia da República. “Dei hoje indicação ao nosso gabinete jurídico no parlamento para chamar a mãe e o pai das gêmeas para serem ouvidas no parlamento, via ‘zoom’, uma vez que eles se disponibilizaram no Brasil e à imprensa brasileira a prestar todos os esclarecimentos”, afirmou André Ventura.

“Era importante que o fizessem, uma vez que foi este país que lhes pagou os medicamentos dos filhos. O mínimo que podiam fazer pelos contribuintes portugueses era falar e explicar o que aconteceu”, defendeu.

 

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