Livro descreve a prática médica no Brasil Colonial

Da Redação
Com Agencia Fapesp

Com as caravelas de Pedro Álvares Cabral, chegou ao Brasil em 1500 o médico João Faras, astrônomo e astrólogo judeu, íntimo do rei D. Manuel I. Mas para a população local, aceitar uma autoridade médica na época foi um processo lento.

Parte desse processo está agora descrita no livro “As práticas e os saberes médicos no Brasil colonial (1677-1808)”, de Ana Carolina de Carvalho Viotti, publicado com apoio da FAPESP.

Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Viotti é historiógrafa do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica (Cedaph), no campus de Franca da Unesp.

“Procurei fazer o levantamento mais completo possível dos escritos publicados por médicos e cirurgiões que atuaram no Brasil durante o período considerado. No primeiro capítulo, enfoquei os médicos e a hierarquia que havia entre eles. No segundo, as doenças e como os doentes eram descritos. No terceiro estão as receitas e os ingredientes empregados em sua confecção”, disse Viotti à Agência FAPESP.

A escolha de 1677 como marco inicial da pesquisa culmina com a obra mais antiga sobre o tema, livro de Simão Pinheiro Mourão, médico diplomado pela Universidade de Coimbra, denunciando a prática da medicina por pessoas não licenciadas na época.

“A escolha dessa obra – publicada com o título Queixas repetidas em ecos dos arrecifes de Pernambuco contra os abusos médicos que nas suas capitanias se observam tanto em dano das vidas de seus habitadores – foi bastante intencional, porque ela explicita, logo de início, um conflito que perpassou todo o período, constituído pela oposição entre médicos formados nas universidades europeias e práticos não diplomados e curandeiros que atuavam no país”, explicou.

Segundo a autora, médicos e cirurgiões no Brasil, quando existiam, tinham atuações muitas vezes semelhantes, sendo os cirurgiões mais comuns e menos onerosos. No entanto, o recurso da população quando do acometimento de doenças quase sempre pendia para os profissionais não licenciados, como os curandeiros e parteiras.

Os médicos eram poucos e caros, e seus tratamentos, baseados em um sistema dogmático, nem sempre davam resultado. Os cirurgiões, em número maior e a preços menores, ofereciam uma medicina eclética, mas ainda assim objeto de estudos, que incorporava vários tipos de conhecimento e se mostrava mais efetiva no tratamento dos casos concretos.

“Na prescrição das ‘mesinhas’, como eram chamados os compostos receitados, geralmente recorria a ingredientes disponíveis nas hortas das casas ou no campo ao redor, constituídos por plantas locais, capazes de substituir, com vantagem, as plantas europeias, de difícil acesso e caras”, disse Viotti.

Já os curandeiros, barbeiros, parteiras e práticos em geral valiam-se, grosso modo, da observação das técnicas médico-cirúrgicas aliada aos saberes tradicionais de origem indígena e africana. Dessa mistura empírica resultava uma assistência à saúde acessível e barata, validada pelas notícias de casos bem-sucedidos.

Mas a atuação desses práticos, muito bem-vista pela população, constituía uma concorrência indesejável para os médicos diplomados e cirurgiões licenciados.

“Filhos de senhores de engenho, comerciantes ricos e outras pessoas de destaque na sociedade colonial eram, muitas vezes, enviados à Europa para se diplomarem. Se fizermos um levantamento dos formados em Coimbra, em Montpellier, em Edimburgo, constataremos que havia muitos naturais do Brasil entre eles. Mas, uma vez formados, esses médicos acabavam, quase sempre, ficando na Europa. Poucos voltavam. Então, a maioria daqueles que exerciam o atendimento à saúde na colônia era constituída por cirurgiões e práticos”, disse Viotti.

Prevenção de doenças

A partir da segunda metade do século 18, começou-se a pensar na possibilidade de prevenção das doenças por meio da higienização dos ambientes ou de mudanças na alimentação. No caso das epidemias, também ocorreu a transição de uma concepção moralista para uma concepção bem menos pautada em conotações morais.

“Por exemplo, no começo do período que estudei, houve uma grande epidemia em Salvador e outra em Recife. Os médicos da época atribuíram, como uma das causas para um mal tão grande, o ‘comportamento vicioso’ dos habitantes: presença de prostitutas, casamentos com concubinas etc. Esse tipo de enfoque foi-se alterando ao longo do tempo e um fator como a falta de higiene passou a ser considerado como a grande causa dos contágios”, disse Viotti.

“O povoamento da terra, o aumento da população e seu deslocamento, de acordo com as novas demandas econômicas, também gerou obras específicas para tratar das manifestações peculiares de cada região. Por exemplo, no século 18, o Ciclo do Ouro fez com que surgissem livros médicos voltados para o clima e a alimentação de Minas Gerais e para as condições de pessoas que ficavam muito tempo imersas na água nas atividades de garimpo e bateia. Eram obras de medicina prática, escritas por cirurgiões, narrando casos bem-sucedidos para o auxílio de pessoas que não tinham possibilidade de dispor do atendimento de médicos”, disse.

Dadas as condições de poucos médicos e muitas pessoas a serem atendidas, vários religiosos, especialmente os jesuítas, passaram a atuar como médicos práticos ou enfermeiros. Até a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1756, foram eles que mantiveram as boticas, como eram chamadas as antigas farmácias, e também os hospitais.

“O que esses religiosos faziam era observar as práticas de cura dos indígenas e dos africanos, conjugá-los aos conhecimentos letrados da época, bastante consultado por eles, e adotar os medicamentos prescritos, retirando-os de seus contextos rituais e despindo-os de suas conotações mágicas ou espirituais”, pontuou.

Com a vinda da Corte e a institucionalização do ensino da medicina, o número de médicos licenciados no Brasil aumentou, assim como aumentou sua influência na sociedade. Mas a aceitação da intervenção social dos médicos pela população apresentou flutuações ao longo do tempo.

Quase um século depois do período estudado pela pesquisadora, um caso famoso de rechaço dessa intervenção foi a Revolta da Vacina, quando a vacinação obrigatória contra a varíola, imposta por recomendação do sanitarista Oswaldo Cruz, provocou verdadeira insurreição popular no Rio de Janeiro, obrigando o governo federal a decretar estado de sítio. Entre 10 e 16 de novembro de 1904, o centro da cidade virou um campo de guerra, deixando um saldo de 30 mortos, 110 feridos e centenas de pessoas presas ou deportadas para o Acre.

SERVIÇO
As práticas e os saberes médicos no Brasil colonial (1677-1808)
Autora: Ana Carolina de Carvalho Viotti
Data: 2017
Editora: Alameda
Páginas: 210
Preço: R$ 44

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