Presidente do ICOM diz que Europa deve reconhecer violência do passado colonial

Mundo Lusíada com Lusa

A presidente do Conselho Internacional de Museus (ICOM na sigla em inglês), Emma Nardi, defendeu hoje, em Lisboa, que a Europa “deve reconhecer” a violência do passado colonial, e que “os museus podem mudar narrativas e mentalidades” nesse sentido.

A responsável da maior organização não-governamental mundial de museus, com representação em 150 países, falava à agência Lusa num intervalo da conferência internacional “Aos Museus Cidadãos! Museus e Cidadania: Experiências, Conceitos e Desafios”, organizada com o objetivo de debater o papel dos museus na construção da cidadania.

“Vivemos numa sociedade cada vez mais violenta, vemos guerras a acontecer muito perto da Europa, o que não acontecia há 50 anos. Temos um problema terrível de imigrantes a morrer a caminho [da Europa], e a ser rejeitados, e temos de cuidar desta situação. Somos um continente rico, e temos de os acolher, o que não está a acontecer”, defendeu Emma Nardi.

A conferência, primeira iniciativa pública organizada pela Museus e Monumentos de Portugal (MMP) em parceria com o ICOM, inscreve-se no quadro das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, com o objetivo de celebrar os museus como espaços de “diversidade, criatividade e liberdade”, e acolhe até quinta-feira cerca de 300 participantes portugueses e estrangeiros.

Pela primeira vez em Portugal, está presente toda a direção mundial do ICOM, incluindo os dois vice-presidentes, Inkyung Chang e Terry Nyambe, representanto 16 países dos cinco continentes.

Na mesma linha de outros oradores, na sua intervenção, Emma Nardi falou sobre o papel dos museus no complexo cenário mundial, partilhando experiências e discussão dos principais desafios do século XXI, desde as alterações climáticas, sustentabilidade, ou a proliferação de discursos populistas.

A propósito da questão da descolonização nos museus, a presidente do ICOM mundial disse à Lusa que não concorda com a palavra que tem sido usada frequentemente por especialistas e comentadores em todo o mundo.

“Quando eu digo que a palavra descolonizar não é uma palavra adequada, é porque isso significa dizer: Eu colonizei e agora decido descolonizar. A ação é sempre de uma parte dirigida a outra, que é o objeto. Não sei se há uma palavra em inglês para exprimir esta minha ideia, mas em francês o que eu considero correto é ‘reconnaissance’ [reconhecimento], que vem de ‘connaissance’ [conhecimento]”, explicou à Lusa.

Para a museóloga italiana, “precisamos de perceber estes povos que foram escravizados, que a sua cultura tem dignidade e que ignoramos este conhecimento, portanto temos de o reconstruir. É preciso reconhecer essa violência exercida no passado”.

“E esta palavra significa também gratidão. Porque se o mundo ocidental é tão rico, é-o justamente por ter explorado tantos povos no passado. É tempo não só de retribuir, mas de reconhecer”, reiterou.

Questionada pela Lusa sobre o papel que os museus podem ter neste processo, Emma Nardi disse estar convicta de que “são um importante fator para espalhar ideias e mudar as mentalidades das pessoas, porque são organizações não lucrativas, dedicadas à investigação e à cultura, recebem visitantes e podem criar diferentes narrativas”.

“E é isso mesmo que os museus devem fazer, especialmente nos tempos presentes”, acrescentou, sublinhando a sua função.

Na mesma linha, Steph Scholten, do ICOM-Reino Unido, falou sobre os perigos da ascensão do populismo em muitos países, e a forma como a cultura tem sido instrumentalizada pela classe política naquela região, dificultando a ambição de muitos diretores de museus para captarem audiências de visitantes mais diversificadas.

“Alguns museus foram ameaçados de perder apoios mecenáticos caso retirassem peças que estavam relacionadas com a colonização ou fizessem qualquer declaração de caráter político”, apontou, na intervenção intitulada “Entre a espada e a parede: museus ingleses e escoceses em tempos de populismo”.

O museólogo belga Alexandre Chevalier, membro do Conselho Europeu do ICOM, recordou que “na antiga Grécia, os museus eram lugares de ensino e aprendizagem, instituições integrantes das cidades, e portanto da democracia”.

Indicou que, este ano, o ICOM Bélgica “lançou um movimento em prol do estabelecimento de mesas de voto das eleições europeias, nacionais e locais, não apenas em escolas e edifícios oficiais, mas também em museus, uma iniciativa que tem enfrentado algumas dificuldades”.

Democracia nos museus portugueses

O arqueólogo Luís Raposo afirmou hoje que Portugal “está ainda longe de cumprir as metas democráticas do 25 de Abril na área dos museus”, devido ao baixo número de visitantes nacionais, com 70% estrangeiros, e a falta de pessoal nestas entidades.

“Desde a Revolução, houve um aumento explosivo do número de museus no país e também de visitantes, sempre crescente, com exceção do período da pandemia, mas continuamos a ter os nossos problemas”, avaliou o responsável na sua intervenção, no segundo dia da conferência.

Depois de apresentar um quadro da evolução do setor dos museus antes e depois da revolução do 25 de Abril de 1974, perante uma audiência de cerca de 300 participantes, Luís Raposo apontou aspectos positivos e negativos nos espaços museológicos nacionais: “Os visitantes têm crescido, mas quase 70 por cento são estrangeiros. E a mesma percentagem tem formação superior, enquanto só 10 por cento tem formação básica”, indicou, com base em dados dos censos e de um inquérito realizado em 2015.

Ressalvou que este perfil se refere apenas aos museus nacionais, “já que nos outros museus dispersos pelo país, os públicos são mais diversificados”, referiu, sobre um universo de 1388 entidades que se designam por museus, mas só 730 são assim designados tecnicamente, porque têm “as condições adequadas de funcionamento”.

“Nesses pequenos museus dispersos pelo país, o maior número de visitantes são locais e a seguir surgem os grupos escolares”, acrescentou o responsável.

“Os museus têm de ter pessoal de base, de todas as carreiras”, defendeu o responsável, lamentando que em Portugal exista “baixo emprego também nos arquivos e bibliotecas”, uma situação que “é preciso enfrentar, porque significa que as metas de desenvolvimento do 25 de Abril ainda não estão cumpridas”.

O ex-diretor do Museu Nacional de Arqueologia disse ainda que, pese embora todos os problemas dos museus, continua a acreditar no seu poder e papel social para promover a democracia.

Luís Raposo disse não conhecer outro país europeu que tenha o patrimônio cultural “tão bem tratado” ao nível da Constituição, incluindo o direito da ação popular na sua defesa”, realçou, apontando que esse interesse da sociedade portuguesa manifestou-se logo a seguir à revolução.

“Após o fim da mais longa ditadura da Europa, deu-se uma explosão do associativismo cívico dedicado à defesa do patrimônio por todo o país”, lembrou o ex-presidente do ICOM-Europa.

No entanto, lamentou o contínuo investimento reduzido na cultura, em Portugal, através do Orçamento do Estado, “o que coloca o país em penúltimo lugar na Europa, só acima da Grécia”.

A MMP, que gere 38 museus, palácios e monumentos nacionais, nasceu no início do ano em resultado da reorganização da antiga Direção-Geral do Patrimônio Cultural (DGPC), dividida ainda no instituto do Património Cultural.

O ICOM – que possui uma secção em Portugal – foi criado em 1946, dedicado à preservação e divulgação do patrimônio natural e cultural mundial, tangível e intangível, através de orientações de boas práticas.

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