Advogados que tratam com migrantes criticam burocracia que impede o cumprimento da lei

Mundo Lusíada com Lusa

A burocracia excessiva e a ausência de resposta do Estado português aos pedidos de regularização dos imigrantes foram criticados por advogados que lidam com centenas de casos de pessoas que têm a vida em suspenso.

“As pessoas não podem fazer nada, não podem ir a um funeral no seu país, não podem trazer filhos, ficam com a vida bloqueada à espera da regularização”, afirmou à Lusa o advogado Bruno Gutman, que criticou a falta de atenção que o tema tem tido por parte do governo.

“Portugal é um país que sabe que precisa do movimento migratório porque há um problema demográfico, com o envelhecimento populacional”, mas “parece que os serviços públicos não querem saber e não dão resposta”.

“Todos os dias alguém me manda uma mensagem e me comunica mais um atraso, uma ausência de resposta”, explicou Gutman, considerando que a passagem das responsabilidades do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) “não trouxe, até ao momento, nenhuma melhoria”.

Criticas semelhantes fez o advogado José Gaspar Schwalbach, autor de vários livros sobre questões da migração.

Tudo indicava que a mudança do SEF para a AIMA “só pudesse melhorar porque estava tudo muito mau”, mas “sucede que, na prática, piorou” porque não foi feita a migração das bases de dados pendentes, criando “novos atrasos”.

“Coisas simples como um visto caducado não é possível resolver. Isto não faz sentido”, disse.

O fim do SEF entregou à PSP a responsabilidade da fiscalização da entrada dos imigrantes nos aeroportos nacionais, que tem “critérios mais rígidos para a entrada no território nacional” do que no passado.

Os imigrantes “são deixados ao abandono numa sala de passagem logo à entrada do posto de controlo” no aeroporto, o que “viola a convenção europeia dos direitos humanos”, com pessoas a “dormir no chão”, sem condições.

Sobre o novo governo, José Gaspar Schwalbach espera que consiga “desbloquear a questão dos agendamentos e da efetiva criação de mais postos de atendimentos para pedidos iniciais”, através de postos moveis, por exemplo.

“São milhares de pedidos a aguardar um agendamento e é incompreensível que um governo não tenha como bandeira para os primeiros 60 dias resolver este problema que é sistêmico”, disse.

Sobre alterações à lei de estrangeiros, que regula a entrada de imigrantes, José Gaspar Schwalbach admite que possam vir a ser impostas novas regras, como um conhecimento prévio da língua portuguesa ou aulas de cidadania portuguesa antes de poderem pedir um visto.

Sobre os artigos que permitem aos imigrantes que chegam com visto de turismo apresentar uma manifestação de interesse para procurar trabalho – a causa do maior número de processos pendentes -, Schwalbach admite que esse recurso legal possa terminar.

“Esses artigos datam de 2007 para permitir a legalização de muitos imigrantes que estavam em Portugal há muitos anos e que, de outro modo, não se poderiam regularizar”, recordou o jurista, considerando que “a causa que permitiu a criação desse procedimento cessou”.

“Não me choca que seja alterado, porque cumpriu a sua função”, acrescentou José Gaspar Schwalbach, admitindo que os atrasos do sistema transformaram esses artigos num problema.

“Quem faz uma manifestação de interesse não pode ter nenhuma expectativa de resposta positiva mas a partir do momento em que esse procedimento demora mais do que o adequado (180 dias), assim já se consuma o facto”, explicou.

Sobre esta questão, Bruno Gutman tem uma posição diferente. “Acabar com a manifestação de interesse não vai impedir a pessoa de vir, mas vai criar uma situação de ilegalidade”. “Ora, se as pessoas pagam impostos, têm contrato de trabalho, o mais natural deveria ser terem os vistos resolvidos”, acrescentou.

Regularização

Também o especialista em migrações Pedro Góis apelou ao futuro executivo que acelere a regularização dos imigrantes sem facilitismos e dê outro peso ao tema da orgânica do governo, liderado pela Aliança Democrática (AD).

Em causa estão os sucessivos atrasos nos processos de regularização dos processos pendentes, acelerados pelo fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a sua transformação na nova AIMA.

A transição entre as duas organizações deve ser acelerada porque ainda permanecem “muitos obstáculos para que possamos entrar numa velocidade de cruzeiro para gerir as entradas”, afirmou o docente da Universidade de Coimbra.

“Temos tido uma pressão migratória muito grande e de algumas origens que não estávamos à espera”, disse, numa referência aos imigrantes vindos do Indostão.

“Uma das prioridades do novo governo será resolver muito rapidamente esta questão sem facilitismos” e “dar autorizações de residência sem a devida fiscalização”, considerou, admitindo que o tema tem um impacto grande na opinião pública.

“É facilmente perceptível que isto [a chegada de imigrantes em grande número] gera problemas de coesão social e temos que olhar para a questão com responsabilidade”, para, por um lado, “responder às expectativas de quem chegou a Portugal, mas, por outro lado, responder também às expectativas dos portugueses e dos imigrantes que já cá estão”, para “não verem contaminada a sua integração no mercado de trabalho e na sociedade portuguesa, devido a esta chegada abrupta de muitas centenas de milhares de pessoas”.

Depois, salientou, é necessário avaliar se é possível “continuar com as portas tão abertas como temos tido até agora ou se o mercado de trabalho está a apresentar indícios de saturação, sendo que noutras áreas como a habitação e como a educação, aparentemente já estamos com dificuldades que não vamos conseguir resolver rapidamente”.

A questão da “imigração é demasiado séria para estar desaparecida” na orgânica do governo, pelo que “tenho alguma curiosidade para perceber como é que o futuro Governo vai colocar o tema” no seu sistema de funcionamento.

A AIMA foi criada no final de outubro num momento em que existiam 300 mil processos pendentes, a maioria deles respeitantes a manifestações de interesses por parte imigrantes que já estão a trabalhar. A esse número somam-se centenas de milhares de processos de revalidações e outros casos.

Morosidade

De acordo com Leônia Pinheiro, sócia diretora da CV Assessoria Internacional especializada em imigração, antes da pandemia, os processos eram conduzidos com relativa eficiência, cumprindo os prazos estabelecidos e proporcionando aos requerentes uma resposta dentro de um período razoável. “No entanto, com a crise sanitária, houve uma sobrecarga nos sistemas administrativos, resultando em atrasos significativos na análise e decisão dos processos”, acrescenta.

Também a recente descentralização dos processos de nacionalidade portuguesa, antes concentrados em Lisboa e Porto, para as conservatórias (cartórios) de todo o país, também contribuiu para essa morosidade. Muitas dessas conservatórias não possuíam experiência prévia na análise dos processos e, consequentemente, não estavam preparadas para lidar com o volume e complexidade das solicitações. Ela destaca ainda que muitos funcionários estão se aposentando mensalmente e sem reposição, já que não há concursos públicos para novas contratações há duas décadas.

“A morosidade tem sido atribuída oficialmente ao aumento significativo no número de pedidos. De 2010 a 2016, a média era de 100 mil casos anuais mas, nos últimos anos, essa cifra aumentou consideravelmente”, diz. Em 2021, eles ultrapassaram os 195 mil, e em 2022, estima-se que tenham chegado a cerca de 250 mil casos.

Diante dessa situação, os requerentes enfrentam a incerteza e a frustração de não receberem uma resposta dentro dos prazos inicialmente estabelecidos, o que pode ter impactos importantes em suas vidas, defende.

“A morosidade na análise dos processos de nacionalidade portuguesa é um problema sério que afeta diretamente os requerentes, muitos dos quais têm planos e expectativas dependentes dessa decisão. A descentralização dos processos para conservatórias menos experientes e a sobrecarga resultante da pandemia contribuíram significativamente para esses atrasos”, conclui a especialista.

 

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