Descendentes de sefarditas – 2022 “ANNUS HORRIBILIS”

Por João Manuel Ribeiro Coelho

Descendentes de sefarditas viveram este ano de 2022 como uma sucessão de horrores. No início do ano já pairava no ar a notícia de que uma nova regulamentação da lei da nacionalidade portuguesa estava no prelo. Foi discutida pelo governo português ao longo do ano de 2021. Entre idas e voltas, conseguiu-se esvaziar, através de um decreto, uma lei aprovada por unanimidade na Assembleia da República Portuguesa em 2013.

O estopim foi o caso Abramovich,  o oligarca russo que comprou a nacionalidade portuguesa pela via sefardita. Para atender não sabemos quais interesses, o governo aproveitou a  ocasião para enfiar a faca no coração dos descendentes de sefarditas a quem a lei havia concedido desde 2015 “o direito ao retorno à comunidade nacional”.

Uma facada certeira e traiçoeira que deixou letra morta uma lei celebrada em Portugal e no mundo como uma lei justa, sábia e oportuna. Justa porque redime Portugal de séculos de perseguição cruel contra os judeus, sábia porque honra a generosidade da cultura portuguesa e oportuna porque contribui para combater o déficit demográfico do qual Portugal tanto sofre com o envelhecimento galopante da população.

Com a entrada em vigor do decreto lei 26/2022 de 18 de março passaram a ser exigíveis vínculos com a comunidade nacional, tais como “possuir bens herdados mortis causa” e/ou ter efetuado “viagens a Portugal ao longo da vida”. A perversidade é gritante quando esses vínculos se aplicam exatamente àqueles que durante séculos, por motivos religiosos, viram seus bens confiscados e foram obrigados a fugir de Portugal para escaparem das masmorras ou de serem queimados vivos em praça pública.

Além de perversa, esta regulamentação da lei da nacionalidade portuguesa é, afirmam os especialistas, inconstitucional. Ela coloca em pé de desigualdade perante a lei aqueles que têm direito à nacionalidade portuguesa. Ao exigir tais vínculos com a comunidade nacional, ela dá ao agente público um poder discricionário que não é compatível com a boa governança de um país como Portugal que tem a pretensão de irradiar cultura pelo mundo.

Como se não bastasse, colocou sob pressão a Comunidade Israelita do Porto – CIP e a Comunidade Israelita de Lisboa – CIL, entidades mandatadas por lei para emitirem certificados de origem judaico-sefartida aos descendentes que conseguem provar laços de sangue com antepassados judeus perseguidos. A CIP foi objeto de inquéritos judiciais e decidiu parar de certificar. Entrou com uma queixa na Procuradoria Europeia contra o governo português por antissemitismo de Estado. Quanto à CIL ela continua certificando mas debaixo de pressão.

Desde a entrada em vigor da nova regulamentação da lei da nacionalidade portuguesa, em 1º de setembro de 2022, a CIL está pedindo novas provas que sustentem a origem sefardita de  ISABEL VELHO, ANTONIO ALVARENGA, FRANCISCO VAZ COELHO, JOÃO LOPES…

– O que leva a CIL a questionar agora a judeidade de notórios sefarditas e cristãos-novos que até então ela certificava? A resposta parece ser relativamente simples. Todos eles têm uma coisa em comum: foram objeto de estudos feitos por renomados historiadores, antropólogos e genealogistas atestando a judeidade deles mas carecem de provas colhidas em fontes primárias.  Estamos perante um novo critério feito sob medida para atender aqueles que veem com alguma celeuma a prevalência dos estudos. Sinal dos tempos em que vivemos: desvaloriza-se o estudo e cultiva-se a polêmica.

Enquanto isso, como se nada de anormal estivesse ocorrendo, o Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, chamou ao Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República de Portugal, no passado dia 23 de junho de 2022, logo após ter promulgado, em março, o decreto-lei que institui a perversa regulamentação da lei da nacionalidade portuguesa, o Senhor Dr. Joshua Ruah, antigo Presidente da Comunidade Israelita de Lisboa para distingui-lo com a mais alta insígnia de Estado, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

Na foto em destaque, que ilustra a cerimónia, além do Dr. Joshua Ruah com a faixa decorativa, ao lado do sorridente Presidente da República Portuguesa, encontra-se o Dr. José Ruah, de gravata vermelha e óculos, filho do condecorado, cuja assinatura aparece aposta em todos os certificados de origem judaico-sefardita emitidos pela Comunidade Israelita de Lisboa.

Concluo, emitindo a minha opinião sobre este enredo, digno de um novela kafkiana onde se discorre sobre a trivialidade do absurdo. Um absurdo que deixa todos os envolvidos – descendentes de sefarditas, advogados, genealogistas, estudiosos, peritos das comunidades israelitas –  na angustia e na  incerteza.

O primeiro ponto a destacar é que a lei da nacionalidade portuguesa permanece inalterada e que a Comunidade Israelita de Lisboa continua emitindo certificados para descendentes de judeus sefarditas de origem portuguesa.  O segundo ponto a destacar é que os decretos regulamentando a lei da nacionalidade portuguesa são frequentes, quase sempre polêmicos e muitas vezes corrigidos. Aconteceu com a aquisição da nacionalidade por filhos e netos que exigia vínculos polêmicos com a comunidade nacional que foram extintos pela lei orgânica nº 2/2020, de 10 de novembro.

Acredito que o mesmo vai acontecer com a regulamentação 26/2022 de 18 de março. De tão insipientes, esses vínculos são inaplicáveis. Além de serem inaplicáveis, esses vínculos são, segundo a opinião de especialistas, inconstitucionais. Por isso, mais tarde ou mais cedo, terão que ser corrigidos. É impensável manter em vigor uma lei regulamentada por um decreto que a torna sem efeito.

Por isso mesmo, alguns genealogistas, entre os quais me encontro, e diversos operadores do direito, com os quais trabalho, continuam a elaborar relatórios genealógicos e a enviar requerimentos de nacionalidade portuguesa para a Conservatória dos Registos Centrais. Primeiro porque entendem que esses vínculos não são impositivos e segundo porque acreditam que se o poder discricionário dos Conservadores impuser esses vínculos, as Conservatórias serão inundadas com processos de inconstitucionalidade.

Um sinal positivo de que esses vínculos não serão impostos indiscriminadamente é que, nos novos formulários de requerimento de nacionalidade portuguesa distribuídos desde o passado dia 01 de setembro 2022 pelo Instituto de Registos de Notariado – IRN, em lugar algum do formulário é pedido que se atenda especificamente a esses requisitos.

Existem também interpretações da nova regulamentação da nacionalidade portuguesa que acham (sim, estamos no domínio do “achismo”) que os requerentes oriundos dos países de Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP têm vínculos suficientes e valiosos a fazer valer. Só saberemos se tudo isto procede quando começarem a ser respondidos e atendidos os requerimentos enviados depois do passado dia 01 de setembro 2022.

Entretanto a CIL continua certificando. Fiz o balanço dos relatórios enviados por mim para a CIL neste ano de 2022. Começa no 47.000 e tal e vai agora no 138.000 e tal. Um aumento de quase 200% em menos de um ano. A CIL ficou os meses de setembro e outubro sem entregar certificados e em novembro de 2022 voltou a emitir certificados, agora adequados às exigências da nova regulamentação.

É impensável imaginar que os novos requerentes agora certificados atendem aos controversos vínculos. Também me parece impensável que a administração portuguesa ignore o impacto social, cultural, político e econômico, desses requerimentos na sociedade portuguesa e brasileira.

 

Brasília, 20 de dezembro de 2022

Por João Manuel Ribeiro Coelho
( [email protected] )
Antropólogo e genealogista

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: