Escritor de São Tomé defende valorização da diversidade da língua portuguesa

Foto Museu da Língua Portuguesa São Paulo

Da Redação com ONUNews

Ao constatar que São Tomé e Príncipe era o país africano de língua portuguesa cuja história era menos divulgada, o são-tomense Orlando Piedade decidiu “brincar de escrever”.

Hoje um escritor consagrado e premiado, ele afirmou que sua jornada literária revelou o potencial da língua portuguesa para falar do passado, “dando alma e voz aos esquecidos”.

Uma língua de extremos
O autor de três livros sobre a era colonial e a escravidão no pequeno país insular foi entrevistado pela ONU News como parte da série especial sobre o Dia Mundial da Língua Portuguesa – 5 de maio.

“A língua portuguesa, para além de uma ferramenta, é o nosso território e o nosso espaço. É o nosso território com muito potencial. É o espaço onde a memória se cruza e de várias formas, em várias vertentes. Portanto, é uma língua em que nós podemos passar de extremos com a mesma força. Nós podemos ser dóceis, podemos ser meigos e ao mesmo tempo podemos ser rudes, assertivos e tudo com base na riqueza da língua portuguesa. Portanto, esta dualidade e esta diversidade é um instrumento que tem muita força. Agora, nós temos é que continuar a aceitar a diversidade”.

Piedade explicou que sua obra trata de realidades que se estendem para além de São Tomé e Príncipe e abrangem Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, Angola e Portugal.

Ele contou que para cada um de seus livros realizou pesquisas rigorosas para poder então iniciar o processo criativo de imaginar personagens, modos de vida e interações sociais totalmente baseadas nos fatos históricos.

Um exemplo vem da sua primeira obra, “Amor Proibido”, que retrata a realidade da época, onde uma mulher mesmo rica, tinha seu patrimônio controlado pelo marido. A personagem principal, após se tornar viúva, recuperou a posse temporária de sua riqueza, mas teve que se transformar para evitar um novo casamento e escapar de ameaças e tentativas de sequestro.

Crítica social através da poesia
O autor também se aventurou na poesia, gênero que considera um desafio. Ao ser convidado para escrever em uma coletânea, ele decidiu usar sua voz para fazer uma crítica à forma como a sociedade são-tomense trata as mulheres, especialmente as mais velhas, que muitas vezes são excluídas e estigmatizadas como “feiticeiras”, chegando a ser espancadas e mortas.

“Portanto, eu vi naquilo, naquele momento de poesia, uma forma de dar voz a esta gente, uma forma de chamar a atenção da sociedade para o drama que é a vida das pessoas que deram as suas vidas pelas nossas vidas e que estão agora numa fase descendente do seu ciclo de vida e que deviam ser merecedoras de toda a nossa atenção e não propriamente de maus tratos, abandono, esquecimento, vexames, como atualmente acontece”.

Piedade defendeu que para explorar o grande potencial da língua portuguesa é necessária mais abertura para as diferentes expressões do idioma na produção cultural, como as novelas brasileiras, músicas portuguesas, angolanas, moçambicanas e cabo verdianas, citou.

O autor são-tomense afirma que é preciso perceber a língua portuguesa nas suas diferentes vertentes enquanto “um organismo vivo” e garantir que haja reciprocidade no consumo de todas as variações. Confira mais da entrevista:

Fatos históricos

“O processo criativo assenta essencialmente nos fatos históricos e pode parecer estranho, mas vou explicar. Eu defino com o horizonte, a temática, aquilo que eu pretendo e faço uma pesquisa devidamente balizada dentro deste intervalo. E começo a imaginar como é que foi a vida, como é que eram as pessoas, como é que elas interagiam, como é que as coisas aconteciam dentro deste contexto. E aí personagens começam a aparecer, os papéis começam a aparecer e a interessar, para que haja aquele rigor. Eu não posso estar a retratar o século XV, o século XVI e trazer uma qualquer personagem que esteja encaixada no século XX, seria um desfasamento inaceitável. E, portanto, é por aí que, em primeiro lugar, eu vou atrás dos factos históricos. Procuro perceber como é que estes elementos existiram, coexistiram, funcionaram e se entrelaçaram entre eles e daí crio todo aquele contexto da ficção. Eu vos dou um exemplo no meu primeiro livro, “O Amor Proibido”, que podia perfeitamente ter um título completamente diferente. Podia ser “A Viúva de Manto Negro”. Essa viúva de manto negro não é nada mais, nada menos do que um retrato da época, porque as mulheres naquela altura tinham um papel perfeitamente secundário e elas podiam até ser milionárias, ser ricas, com grandes posses, grandes patrimônios. O facto é que elas estão na posse do património de forma transitória e elas, enquanto são casadas, este patrimônio pertence ao marido. E esta viúva de manto negro, quando o marido morreu, ela ficou na posse do patrimônio de forma transitória, esperando pelo próximo casamento para que o marido fizesse a gestão, passasse a ser o dono e o proprietário de todo o patrimônio que era dela. A verdade é que aquela senhora se transformou após a morte do marido. Não aceitou a fila de pretendentes que ela tinha à porta para se casar com ela. Ela, inclusive, chegou a receber ameaças e tentativas de rapto para ser casada, para um casamento forçado de modo a pôr as mãos no patrimônio que era dela. E ela transformou-se. Ela transformou-se numa outra pessoa. Teve que jogar o jogo da época que, leia-se, ela também teve que passar a ser uma senhora dura. Uma senhora que jogava com as mesmas cartas que a sociedade, com que a sociedade se regia naquela altura. Portanto, nós estamos aqui a falar de personagem criada, devidamente enquadrada dentro do contexto da época, que era São Tomé e Príncipe. Os elementos, os fatores que se conjugaram para que a sociedade são-tomense fosse aquilo que foi, para que tomasse o rumo que tomou e que, não foi nada mais, nada menos, do que um veículo, um percurso que nos transportou até os dias de hoje, que é aquilo que eu bebo, que nós bebemos, que nós partilhamos enquanto um espaço da língua portuguesa.”

Produções culturais

“A língua portuguesa, para além de uma ferramenta, é o nosso território e o nosso espaço. É o nosso território com muito potencial. É o espaço onde a memória se cruza e de várias formas, em várias vertentes. Portanto, é uma língua que nós podemos passar de extremos com a mesma força. Nós podemos ser dóceis, podemos ser meigos e ao mesmo tempo podemos ser rudes, assertivos e tudo com base na riqueza da língua portuguesa. Portanto, esta dualidade e esta diversidade é um instrumento que tem muita força. Agora, nós temos é que continuar a aceitar a diversidade. Eu, por exemplo, se tiver um diálogo com um brasileiro, como estamos neste momento, eu percebo absolutamente tudo o que diz. Há um risco, que já aconteceu comigo, de eu dizer certas coisas e já o inverso não é verdade. Vocês podem não perceber muitas coisas que eu digo. Por quê? Eu felizmente digo isso. Felizmente, eu cresci a ver as novelas brasileiras, a ouvir autores brasileiros, a ouvir e a cantar músicas brasileiras e o mesmo com músicas portuguesas, angolanas, moçambicanas e cabo verdianas. E eu cresci com esta versatilidade, com a capacidade de perceber os diferentes estágios, as diferentes vidas da língua portuguesa, o que, infelizmente, não é verdade, se nós fizermos o movimento inverso. Por que nós corremos muitas vezes o risco de não ser percebidos quando nós falamos? Porque eu acho que ainda temos alguma resistência em aceitar a diversidade e ir atrás da diversidade. Perceber a língua portuguesa nas suas diferentes vertentes enquanto um organismo vivo. E creio eu que esta é uma lacuna que nós temos que continuar a trabalhar. Da mesma forma como nós consumimos a variação da língua portuguesa no espaço brasileiro, ou no espaço português, ou no espaço moçambicano, ou no espaço angolano, deveria haver aquela reciprocidade para que nós percebamos que a língua portuguesa é um instrumento vivo, é o nosso espaço, é o nosso território e tem um potencial imenso. Mas nós temos que aceitar e trabalhar a diversidade para que nós continuemos a potenciar a sua grande capacidade.”

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