Escravizados e a conquista da liberdade na Justiça do Império

Por Thiago Cavaliere Mourelle

Imagine uma pessoa escravizada, em 1838, cinquenta anos antes da abolição formal da escravidão pela Lei Áurea, entrar com um processo na Justiça para provar que, legalmente, tem direito à liberdade. Aposto que, para a maioria das pessoas, isso talvez fosse uma história de ficção, talvez da literatura ou do cinema, impossível de ter acontecido na vida real. Porém, os documentos do Arquivo Nacional nos provam o contrário. De fato, isso tudo aconteceu, e no Brasil, durante o Império.

Vivíamos o período regencial. D. Pedro I havia abdicado ao seu trono no país e tomado o rumo de Portugal, em 7 de abril de 1831. O imperador deixou no Brasil seu filho, também chamado Pedro, que completaria apenas 6 anos de idade em 2 de dezembro daquele ano. O (muitíssimo) jovem aspirante a imperador ficou aos cuidados de José Bonifácio de Andrada e Silva durante cerca de três anos e, depois, passou a ser orientado por Manuel Inácio de Andrade, que residia com a família real no Palácio de São Cristóvão.

Regente Feijó

No Brasil, o período regencial foi um momento de grande disputa pelo poder que D. Pedro I havia abandonado ao se retirar para a Europa. Diversos grupos brigavam para decidir quem ficaria na liderança da nação. Certamente você já ouvir falar ou até estudou mais detidamente sobre essas disputas políticas do período. Entre 1831 e 1835 o Brasil teve, no lugar em que ocupava o imperador, regências trinas. Ou seja, três pessoas ocupavam o cargo, exercendo o Poder Executivo. Entre 1835 e 1840 a regência trina foi substituída pela regência uma. Primeiro de Diogo Antônio Feijó (1835-1838), depois de Pedro de Araújo Lima (1838-1840).

Em linhas gerais, as discordâncias políticas entre liberais e conservadores giravam principalmente sobre qual o grau de autonomia que as províncias deveriam ter. Enquanto os conservadores defendiam o poder concentrado nas mãos dos regentes, os liberais queriam que os governos locais tivessem maior possibilidade de ação e mais peso nas decisões do Império, em especial nas questões políticas e econômicas.

Outro fato que marcou bastante o período regencial (1831-1840) foram as revoltas populares de norte a sul do país. Lutas por melhores condições de vida, contra a escravidão, algumas vezes tentando estabelecer um governo independente do Império. Um exemplo grandioso foi a Cabanagem, no Grão-Pará, com enorme participação de indígenas, negros e mestiços. Os rebeldes chegaram a assumir o governo da província, em Belém. A repressão foi violentíssima, terminando com dezenas de milhares de mortos.

Escravizados entram na Justiça

Em meio a esse contexto de disputa política e revoltas populares, pessoas escravizadas entraram na Justiça para pedir que fossem libertados. O que será que a elite da época pensou? Seria muita audácia? Motivo de piada? Nada disso. No Arquivo Nacional há diversos processos comprovando que essa prática ocorreu várias vezes. Afinal, mesmo a legislação imperial, que via o escravizado como propriedade privada, possuía uma lógica que permitia a obtenção da alforria, caso fosse comprovado que o escravizado, legalmente, tinha direito a ela.

Pegamos como exemplo este processo, de 1838, em que os escravizados Felizardo, Floriano, Cornélio e João entraram com o pedido para que fossem considerados livres. Os três primeiros eram filhos da escravizada chamada no documento pela alcunha de Maria Crioula, e o último tinha como mãe Isabel Cabra. A questão era a seguinte: essas duas escravizadas eram de propriedade do padre Francisco Xavier de Moura que, ao falecer, deixou um testamento com a seguinte decisão: após a sua morte, Maria Crioula serviria a seus herdeiros por mais 10 anos e, Isabel Cabral, por mais 20 anos. Após esses prazos, as duas receberiam a Carta de Liberdade – como esta, por exemplo.

Logicamente, a última vontade do padre Moura foi atendida. Porém, durante esse tempo em que estavam trabalhando para o também padre Francisco Ferreira da Silva, filho do falecido, as duas escravizadas engravidaram e deram à luz aos seus respectivos filhos. E então eis a dúvida: os filhos delas deveriam ser considerados, legalmente, como escravizados? O que você acha?

O processo iniciou-se no Juízo de Direito Cível da Vila de São João del Rei, em Minas Gerais e, em pouco mais de um ano, chegou até o último tribunal de apelação, a Relação do Rio de Janeiro, situado na então capital do Império do Brasil. São quase duzentas páginas de depoimentos, audiências de conciliação que terminaram sem um acordo e, ao término do ano de 1839, a decisão final do juiz.

O advogado do padre Silva procurou, ao longo de sua explanação, comprovar que todos os escravizados que moviam a ação tinham nascido dentro dos prazos estabelecidos no testamento, ou seja, nos períodos em que suas respectivas mães estavam servindo o herdeiro do falecido. Depoimentos de pessoas do círculo social e outras provas tornaram possível mostrar ao juiz e dar certeza de que era verídico o que afirmava o senhor dos escravizados. Além disso, Padre Silva chegou a contratar juristas para analisar legalmente a questão. Nos pareceres, a afirmação unânime era de que os filhos de Maria Crioula e Isabel Cabra deveriam ser considerados escravizados.

Portanto, os quatro jovens deveriam pertencer ao padre Silva? Estava perdida qualquer chance de eles obterem a sonhada liberdade? De forma nenhuma. Pois há um fato novo, outra maneira de enxergar os fatos, presente nessa interessante batalha jurídica: a estratégia utilizada pelos representantes dos escravizados foi diferente e, diga-se de passagem, muito inteligente e sagaz, a fim de tentar convencer a Justiça de libertar João, Floriano, Felizardo e Cornélio.

A decisão final do caso

Os representantes dos rapazes disseram o seguinte: como o testamento do padre falecido indicava que as duas mulheres escravizadas seriam livres após alguns anos de serviço aos seus herdeiros, o padre Silva, na condição de filho do falecido reverendo, tinha o trabalho de Maria Crioula e Isabel Cabra na condição de usufruto e não era senhor das referidas mulheres. Nessa visão, elas não eram propriedade dele. Logo, todos os filhos delas eram filhos de pessoas livres que estavam apenas cumprindo uma obrigação temporária até que recebessem, em mãos, as Cartas de Liberdade. Portanto, Cornélio, Floriano, Felizardo e João eram filhos de mães libertas. Não poderiam ser escravizados.

Na folha 142, os jovens afirmam que o padre Silva era seu “injusto detentor”, pois trabalhavam para o mesmo, na condição de escravizados, na Fazenda do Tanque, no então distrito de Conceição da Barra – hoje, um município de Minas Gerais. Em contraposição, o advogado do padre Silva afirmou, na folha 165, que “os juízes não podem declarar livres os que nasceram escravos”. Já na folha 181, pressiona por uma decisão favorável a ele, pois, segundo suas palavras, a vitória dos escravizados no processo judicial não seria benéfica para o Brasil, podendo vir a afetar outros senhores: “(…) estamos convencidos de que esta decisão não será jamais um monumento para a Justiça e para a jurisprudência de nosso país (…)”.

A última decisão coube ao meritíssimo Caetano Alberto Soares. O referido juiz viria a ser membro destacado do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) – fundado em 1843 –, sendo autor de um célebre discurso na sede da instituição, em 1845, intitulado “Melhoramento da sorte dos escravos no Brasil”, onde criticou a visão do escravizado quase como um ser inanimado ou um animal. Soares defendia medidas para que as pessoas em situação de escravidão tivessem melhor tratamento, chegando a indicar a abolição como um caminho a se buscar. Por isso, vale a pena acompanhar a leitura que ele fez do processo e observar suas conclusões ao caso que estamos apresentando.

Soares começou afirmando que o testamento dizia que “Maria Crioula serviria e trabalharia para seus herdeiros o tempo de dez anos, e que depois o seu testamenteiro lhe passaria Carta de Liberdade. Ora, entre nós, a palavra servir não denota sempre a condição de escravo, pois que temos criados de servir (…) e empregados públicos servem ao Estado”. Em outro momento, o juiz diz que a afirmação de que seria o testamenteiro, e não o herdeiro, que passaria a Carta de Liberdade às duas mulheres, comprova definitivamente que o reverendo “não tinha o domínio na pessoa, e só o usufruto ou o direito aos serviços e trabalhos por dez anos”.

Se o padre Silva não tinha, ele próprio, o direito de dar a Carta de Liberdade, então não era senhor das duas mulheres. Se o direito de propriedade implicaria no direito de dispor das duas pessoas como bem quisessem, e esse não é o caso, o trabalho por dez anos pertenceria somente “à herança e era o preço da liberdade”. Essa era a visão do juiz sobre o caso.

Os três jovens “não podem ser considerados serviços, e nem frutos para serem pertencentes a esse usufruto; é bem de ver que ficarão desde o seu nascimento em posse de sua liberdade, e sem a obrigação de reconhecer senhor”, escreveu Soares. E sobre os pareceres de outros juristas, anexados no processo pelo advogado do padre Silva, o juiz disse respeitar “sinceramente o mérito desses ilustres jurisconsultos, mas não lhe podemos supor o dom da infalibilidade”.

O posicionamento firme da Justiça, por intermédio de Caetano Alberto Soares, é apenas um exemplo do posicionamento progressista que alguns juristas, na época, já tinham sobre a questão da escravidão no Brasil. Na folha 185, o juiz afirma a necessidade de “sustentar os direitos de pessoas infelizes e miseráveis, que não deixam de merecer o nosso patrocínio, e que se lhes faça Justiça”.

Processo de liberdade de Felizardo, Floriano, Cornélio e João – segundo detalhe

Por fim, Caetano Alberto Soares nega o pedido de recurso ao Superior Tribunal de Justiça, finalizando seu parecer dizendo ter “convicção da justiça aos recorridos” e “o desejo de auxiliar, quanto em nós coubesse, os miseráveis, contra os opressores, por amor da humanidade”, criticando “insinuações e preconceitos” que via na petição de revista impetrada pelo advogado representante do padre Silva.

Outros processos a pesquisar

Este estudo de caso ajuda a você, pesquisador, professor ou curioso sobre o período, a compreender que mesmo meio século antes da abolição existia essa prática da busca de escravizados para obter a liberdade na Justiça e, também, advogados e juízes simpáticos à causa abolicionista ou, pelo menos, que olhavam os mais humildes e explorados como dotados de direitos. Apenas décadas depois vieram leis abolicionistas como a do Ventre Livre, a dos Sexagenários e da Lei Áurea – assinada pela princesa Isabel, o que mostra que o caminho foi longo até a concretização do fim da escravização de pessoas – pelo menos legalmente – aqui no Brasil.

É possível ter acesso a outros processos que indicam essa busca pela liberdade por intermédio da Justiça. Neste processo, uma escravizada requer uma ação de liberdade por alegar ter sido obrigada a se prostituir pela senhora. Já neste, a mulher em condição de escravidão aciona sua dona na Justiça alegando ter sido abandonada e não ter sido registrada pela mesma conforme a legislação da época previa.

Há diversas outras situações. Nessa ação, um homem escravizado alega que combinou com seu senhor que, caso entregasse outro homem escravizado em seu lugar, receberia a liberdade. Porém, o senhor não teria cumprido com a palavra.

Um tema comum a vários processos era o escravizado cobrar a Carta de Liberdade ao afirmar que já tinha comprado sua alforria ao seu dono, que agora estava tentando lhe vender a outra pessoa, não cumprindo o acordo. Caso parecido com outro processo em que o apelante requeria sua liberdade, combinada entre ele e seu dono, recém-falecido, trato não cumprido pela viúva. Nesses links, você consegue acessar tais processos na íntegra, ler online, baixar gratuitamente.

Dessa forma, apresentamos um breve panorama sobre outra forma de resistência dos negros escravizados, que se apoiavam na letra da lei para obter sua sonhada liberdade. Uma luta difícil, em tempos sombrios de nossa história, mas que muitas vezes terminou com vitória, como a de Felizardo, Floriano, Cornélio e João, conforme nos mostram os documentos do acervo do Arquivo Nacional.

 

Por Thiago Cavaliere Mourelle
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Supervisor da equipe de Pesquisa e Difusão do Acervo – Arquivo Nacional

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