O nosso homem em Moscovo, por Carlos Fino

Por Carlos Fino

Leio na imprensa as declarações de Paulo Vizeu Pinheiro, novo embaixador de Portugal em Moscovo, e não consigo evitar uma sensação de perplexidade e déjà vu.

PERPLEXIDADE

Perplexidade porque, segundo relato da Reuters, o ex-acessor diplomático de Passos Coelho (2011-2013) teria afirmado que “Portugal ainda não é um país conhecido na Rússia” porque sempre foi “um mercado considerado longínquo”…

Longínquo, talvez. Mas, desconhecido, nem tanto.

Portugal e Rússia estabeleceram relações diplomáticas em 1779 e antes disso, em 1755, já os meios de negócios do Porto, antecipando-se aos governos, haviam tomado a iniciativa de criar um canal de comércio “em direitura” exportando vinhos, fruta, cortiça, azeitonas e sal, em troca de madeira, ferro, linho e cera para as nossas atividades marítimas.

Vasculhando bem nos arquivos, podemos ver até que os primeiros diplomatas portugueses – não ao serviço direto do país, é certo, mas do Vaticano, que então ainda não abandonara o velho sonho de fazer regressar a Rússia à unidade da Igreja – foram recebidos em Moscovo logo no início do século XVII por Boris Godunov.

Recebidos no Kremlin no Palácio das Facetas – edifício de traça italiana da mesma época da velha Casa dos Bicos de Lisboa – como que a sublinhar a comum marginalidade dos dois países em relação ao centro culto da Europa.

No século XVIII, o português António Ribeiro Sanches, que viveu longos anos na Rússia, onde foi médico da Corte e chegou a tratar de Catarina II quando jovem, promoveu o intercâmbio cultural e científico entre a Academia Real de História de Lisboa e a Academia Imperial das Ciências de São Petersburgo.

Apesar da distância, fruto do jogo político diplomático no xadrez europeu, em 1799, vinte anos depois do início das relações oficiais, Portugal e Rússia chegaram mesmo – facto pouco conhecido até hoje – a assinar um Tratado de Aliança Defensiva estipulando ajuda recíproca. Em caso de perigo para a Rússia, Lisboa enviaria seis vasos de guerra e, em contrapartida, em caso de perigo para Portugal, Moscovo comprometia-se a enviar um destacamento de seis mil homens…

A Rússia, pouco depois, mudou de campo e não ajudou Portugal quando, em 1801, o país foi atacado pela Espanha. Logo a seguir, vieram as invasões napoleónicas, sem que nenhum dos lados observasse o que estava estabelecido. Ainda assim, o Tratado não deixou de desempenhar o seu papel no xadrez diplomático europeu, com vantagens para ambos os lados.

Já no século XIX, as relações diplomáticas intensificaram-se, com troca sistemática de correspondência entre os departamentos de política externa dos dois países, com atenções centradas no desenvolvimento das relações comerciais bilaterais, levando à conclusão, em 1895, da Convenção Russo-Portuguesa de Comércio e Navegação.

Em Julho desse mesmo ano – outra curiosidade pouco conhecida – os marinheiros russos a bordo do iate imperial “Tsarevna” (“Princesa”), de passagem por Lisboa, prestaram ajuda no combate ao incêndio que tomou conta do edifício do Parlamento português.

Depois disso, muita água passou sob as pontes. Na sequência da revolução russa de 1917, as relações foram interrompidas, só sendo retomadas depois do 25 de Abril de 1974. No gabinete do embaixador, em Moscovo, um retrato a óleo do nosso último representante diplomático na Corte dos czares – Jaime Batalha Reis – lembra essa inusitadamente longa quebra de laços para países que haviam chegado a ter relações tão próximas: mais de meio século – 57 anos!

Tão prolongado interregno criou certamente um vazio, mas a verdade é que Portugal e Rússia não são propriamente dois ilustres desconhecidos, mesmo tendo em conta apenas o período do 25 de Abril para cá. Basta lembrar que, a certa altura, muitos russos começaram a comprar casa no Algarve. E agora, com os voos diretos da TAP para Moscovo, tudo ficou mais fácil.

PONTO DE SITUAÇÃO

Na sequência das sanções impostas pelos EUA e pela UE em resposta à (re)anexação russa da Crimeia (2014), a que Moscovo respondeu com um embargo a produtos europeus, os fluxos comerciais entre Portugal e a Rússia sofreram um decréscimo superior a 20%. Mas em 2016 já houve uma recuperação assinalável, com as trocas a atingirem 1330 mil milhões de euros – um acréscimo da ordem dos 60%, segundo dados da Câmara de Comércio.

Na última década, a balança comercial bilateral tem sido constantemente desfavorável a Portugal, com a Rússia a crescer no ranking dos nossos fornecedores, em que ocupa hoje a 9ª posição, e a descer na lista de clientes das nossas exportações, em que vem apenas em 37º lugar.

Daí os esforços nacionais em sondar se é possível – mesmo mantendo-se o quadro das sanções – fazer avançar um pouco mais os interesses portugueses naquele mercado.

A visita do ministro português dos negócios estrangeiros Augusto Santos Silva a Moscovo,  em Julho do ano passado, teve esse objetivo e é nessa linha que se inserem agora as declarações do novo embaixador de Portugal, recuperando a retórica do “agora vai” que ouvi tantas vezes no passado e me suscitam uma irreprimível sensação de

DÉJÀ VU

Sensação de déjà vu porque ao longo dos dois períodos em que fui correspondente da RTP em Moscovo, num total de doze anos repartidos por duas décadas, ouvi uma e outra vez até à saciedade os mesmos argumentos agora invocados pelo novo embaixador – de que era preciso apostar, investir, fazer valer os nossos argumentos, a nossa “artilharia pesada”, como ele agora diz, etc, etc., etc… sem que nunca verdadeiramente se avançasse muito.

Enquanto isso, claro, países da nossa dimensão, mas com mais iniciativa e persistência, iam conquistando fatias importantes do mercado russo.

Lembro-me, por exemplo, que logo que a situação na Rússia se liberalizou um pouco, ainda com Gorbachev, os espanhóis abriram um restaurante de tapas e paellas a dois passos da Praça Vermelha…

Percorri essas narrativas da frente para trás e de trás para frente, acompanhei  várias missões do ICEP, o Instituto do Comércio Externo, fiz a cobertura de presenças portuguesas em múltiplas exposições e feiras, segui e participei como tradutor no sonho da Sorefame exportar carruagens para os metros de Moscovo e São Petersburgo, idem para o diálogo Soares-Gorbachev… Vivi por dentro, enfim, as repetidas tentativas de avançar, seguidas do desengano perante os obstáculos da burocracia, da distância, da falta de dimensão da nossa oferta para mercado tão vasto, que exige presença continuada antes de eventualmente começar a dar frutos…

Nesse contexto, para além das nossas velhas dificuldades intrínsecas, que margem real de manobra existe para se ampliarem as relações, tanto mais que a tentativa insana de “isolar a Rússia” a aproximou ainda mais da China, hoje capaz de preencher e superar muitas das áreas de tecnologias intermédias onde poderíamos teoricamente ter algum espaço a disputar?

Um pouco mais de vinho para nichos ricos do mercado russo, um pouco mais de sapatos? Um pouco mais de turismo? Sim, certamente, é possível, como o acréscimo do comércio bilateral registado no último ano já indica. Mas aprofundamento de relações a sério, com projetos e investimentos conjuntos de vulto e inovadores, acho difícil.

Para já não falar de outras hipóteses mais arriscadas – como a proposta que chegou a ser sugerida pela Rússia de instalar uma estação de rastreamento e  lançamento de satélites nos Açores, que certamente seria boicotada pelos EUA…

Ou, no plano cultural, a ideia do saudoso jornalista Mário Neves, primeiro embaixador de Portugal em Moscovo depois do reatamento das relações, de encontrar apoios para transformar a tragédia de Inês de Castro num bailado do Bolshoi…

A propósito – que será feito das centenas de “portugalistas” que os russos formaram nos institutos de Moscovo e São Petersburgo, com sincera simpatia pelo nosso país, de que aprenderam a língua e a cultura, a ponto de recitarem Pessoa de cor? Muitos deles trabalhavam em postos-chave do aparelho de Estado, incluindo no gabinete de Pútin. Constituíam uma espécie de lóbi pró-luso potencial que, ao que me conste, nunca aproveitámos devidamente.

Por maior que seja a natural empatia entre latinos e eslavos, Portugal é demasiado marítimo e está por demais condicionado pelas suas alianças e compromissos internacionais para que possa ter a veleidade de grandes iniciativas próprias em relação ao colosso continental que é a Rússia, hoje cercada de bases da NATO, num clima altamente hostil, a ponto de se falar já de uma nova Guerra Fria, por vezes à beira de um conflito nuclear.

Por isso, que me perdoe o embaixador Paulo Pinheiro – que conheci de perto e com quem travei amizade em Moscovo e, depois, em Washington – mas não alimento, neste início da sua nova missão, particulares expectativas. Desejo-lhe, obviamente, os maiores êxitos, no entanto, como se diz aqui no Brasil, me perdoe, embaixador, mas desacredito…

A não ser que os ventos mudem e a Europa passe a autonomizar-se mais dos EUA, assumindo maior aproximação com a Rússia, como seria natural que acontecesse. Mas a verdade é que as previsões, ao menos para já, não vão nesse sentido.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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