Por Carlos Fino
Foi em Água de Mininos,/ Na Bahia, à flor do mar, /Que o português percebeu/Que isto de ser brasileiro/ É questão de começar
Vitorino Nemésio, Nove Romances da Bahia – 1968
Por mais paradoxal que possa parecer, por contrariar ideias feitas muito divulgadas e naturalizadas no senso comum, num primeiro momento (1820), foi Portugal que tentou libertar-se do Brasil, pelo menos de uma situação considerada asfixiante e até humilhante em termos nacionais.
Tudo começou em 1807, com a primeira invasão francesa e a transferência da Corte para o Rio de Janeiro – movimento sem precedentes na história das monarquias e dos impérios europeus. A subsequente abertura por D. João VI dos portos brasileiros “às nações amigas” (leia-se Inglaterra), inaugurou, logo em 1808, uma dinâmica comercial em tudo desfavorável à antiga metrópole.
Por outro lado, apresentada e justificada como “provisória” ditada que era – literalmente – por motivo de força maior, a transmigração da Corte para a América tendeu, desde o início, a consolidar-se, lançando pesada sombra de dúvida sobre o futuro do Portugal europeu, agora administrado pelo Conselho de Regência e sob a batuta militar do general inglês William Beresford.
Com o passar do tempo, instalados os órgãos centrais de governo no Rio de Janeiro, os interesses dos portugueses transmigrados foram-se enraizando, apontando no sentido de que a Monarquia estava cada vez mais inclinada a consolidar-se definitivamente na América. E até eventualmente a desinteressar-se do país original, aquele “tão desgraçado, como insignificante pedaço de terra”, como nos dá conta, nas suas Cartas, o antigo ministro de D. João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, e como confirmam testemunhos de políticos e diplomatas da época.
De acordo com testemunho do cônsul austríaco no Rio de Janeiro, tendo ele, em 1811, feito notar ao Conde da Barca, que conviria a Corte não se alhear excessivamente de Portugal, o que poderia levar à sua separação, disse-lhe o ministro de D. João VI que o governo não só estava preparado para tal eventualidade como isso não o assustava, pois de bom grado renunciaria à Europa e se tornaria americano…
Este era o caminho que as coisas levavam, gerando cada vez maior descontentamento na antiga metrópole e acabando por contribuir para a eclosão da Revolução de 1820. No seu Manifesto à Nação, os liberais justificam a revolta precisamente com a ideia “do estado de Colonia, a que Portugal em realidade se achava reduzido”, o que “afligia sobremaneira todos os cidadãos, que ainda conservavão, e prezavão o sentimento da dignidade nacional”, acusando o governo de D. João VI instalado no Rio de Janeiro de desfavorecer sistematicamente a antiga metrópole e responsabilizando-o pela crise que o país atravessava em todos os domínios.
Que o primeiro impulso para a separação partiu de Portugal confirmam-no também as declarações de deputados brasileiros às Constituintes. Mesmo já adiantado o ano de 1822, quando as diferenças corriam soltas e lavrava um clima de ressentimento e confronto entre parlamentares de um e outro lado do Atlântico, ainda assim, o padre Diogo Feijó, deputado por São Paulo, afirmava “à face da nação (portuguesa) e do mundo inteiro” que não havia propriamente nas Cortes uma representação nacional brasileira: “Não somos deputados do Brasil (…) porque cada província se governa hoje independente. Cada um é somente deputado da província que o elegeu e que o enviou.”
Cada vez mais ciosos de recuperarem a centralidade perdida desde a saída da Corte, os deputados da metrópole insistiram, entretanto, no regresso de D. Pedro e na subordinação a Lisboa das juntas de governo formadas no Brasil a seguir à viragem liberal.
Os ânimos exacerbaram-se e face ao desacordo, Manuel Fernandes Tomás profere o seu célebre “Adeus, Senhor Brasil”: das duas uma – dizia ele – ou eles (brasileiros) querem isto (a união) ou não. “Se querem hão de sujeitar-se às ordens do Governo, se não querem acabem com isto, digam que não querem. Porventura Portugal há de fazer mais sacrifícios ao Brasil?”.
Meses depois, D. Pedro, referindo-se às Cortes, chama-lhes “pestíferas” e em carta ao pai, entretanto regressado a Lisboa, acentua, indignado: “De Portugal não queremos, nada… nada!”
Para os portugueses deste lado do Atlântico, o Brasil transformava-se no “filho ingrato”, enquanto que para os portugueses do lado de lá Portugal era o “pai tirano”.
Seria talvez mais apropriado considerá-los irmãos desavindos, sobretudo quando se considera a origem e formação das elites brancas dirigentes num e noutro hemisfério, que então entraram em conflito pela disputa da hegemonia.
De qualquer forma, estava consumada a rutura: ao semear sentimentos exclusivistas de um e outro lado, a nação matou o Império. Dividia-se a “nação portuguesa de ambos os hemisférios”, desfazia-se o sonho do “grande e poderoso império” luso-brasileiro. E abria-se também, a partir daí, a grande via do estranhamento e da (in)comunicação entre Portugal e o Brasil que persiste até hoje.
Fontes:
ALEXANDRE, V. (1993). Os sentidos do império – questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Edições Afrontamento.
CALDEIRA, J. (1999). Diogo Antônio Feijó. São Paulo: Editora 34.
MONTEIRO, T. (1927). História do Império – A elaboração da independência. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia Editores.
OLIVEIRA, E. R. (2005). “A ideia de império e a fundação da monarquia constitucional no Brasil (Portugal-Brasil, 1772-1824)”, In: Tempo,vol. 9, n.º18, pp. 43-63. Niterói: UFF.
Por Carlos Fino
Jornalista, doutorado em Comunicação pela Universidade do Minho. Foi conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal no Brasil (2004-2012)