Da Redação com Lusa
Ao som da música tradicional e em espírito de festa, os ensaios das marchas populares de Lisboa ajustam com rigor o desempenho dos filhos da terra, dos de longe e daqueles que foram obrigados a sair dos bairros.
A especulação imobiliária, a alteração das rendas e o crescimento do alojamento local são apontados pelos residentes dos denominados bairros típicos como as principais causas de uma saída abrupta de moradores e da perda de identidade de uma cultura secular.
Sob a luz de holofotes, no Polivalente de Santa Catarina, no Bairro Alto, marcham homens e mulheres de toda a cidade com vontade de honrar as tradições e a essência do bairro hoje conhecido, como por ali se ouve, por “bela adormecida” de dia e “diabo à solta” de noite.
Depois de marchar desde criança em Quarteira, Nuno Gonçalves integra o grupo, aos 23 anos. Chegou à capital para estudar Design e as cores dos figurinos da marcha guiaram-no até à escolha do Bairro Alto: “As cores eram as mesmas do que as que usava no Algarve e ao ver o desfile na avenida soube que tinha de participar. Sou a 4.ª geração da minha família nas marchas.”
Vitor Silva assumiu há muito o compromisso com as marchas. Aos 65 anos, perdeu a conta de há quanto tempo é coordenador da marcha do Bairro Alto e vê na invasão turística e no aumento do alojamento local um problema crescente.
“Este é agora um bairro do turismo. As pessoas ou acabam por morrer ou são obrigadas a sair, e as casas dão lugar ao alojamento local. Assim se vai perdendo a alma do bairro”, afirma à Lusa.
Os marchantes ensaiam há muitos anos no mesmo espaço disponibilizado pela Junta de Freguesia da Misericórdia e em dias de chuva têm de interromper os ensaios: “Não temos fuga. Não existem muitos espaços disponíveis no Bairro Alto e quando algum fica livre é ocupado por quem tem muito dinheiro”, refere o também presidente do Lisboa Clube Rio de Janeiro.
As coletividades e associações são pontos de referência e de encontro de muitos moradores, mas não escaparam aos despejos. O Lisboa Clube Rio de Janeiro teve de deixar a sua sede física em 2013 e a história repetiu-se, novamente na freguesia da Misericórdia, em fevereiro, com a perda da sede do Marítimo Lisboa Clube.
A coletividade, responsável pela marcha da Bica, tinha um espaço de restauração e, devido a um processo com o condomínio, o tribunal decretou o pagamento de cerca de 400 mil euros. Não existindo possibilidade de negociações, e por qualquer espaço na Bica custar muito dinheiro, o Marítimo Lisboa Clube ficou sem sede, explica Pedro Duarte, responsável pela marcha.
“Ficamos de coração partido por perder o berço da nossa marcha. Sem espaço, no pós-marcha não conseguimos conviver, nem promover atividades para verbas extraordinárias, e toda a vertente de apoio social aos mais carenciados perdeu-se”, relata.
Na Bica, cerca de metade dos marchantes é natural do bairro, mas teve de sair. Há participantes vindos do Parque das Nações, de Belém ou da Ajuda, mas também de Almada, Costa da Caparica, Seixal ou linha de Sintra. A marcha sempre acolheu quem é de longe e não tem problemas em conseguir candidatos.
Num espaço provisório e com todas as taças e medalhas de mérito da marcha encaixotadas, os moradores continuam a lutar para não deixar que o espírito do bairro histórico mais pequeno de Lisboa se desvaneça no tempo.
A citar um antigo ditado – “na Bica, coração que lá vai, coração que lá fica” – Pedro Duarte lamenta o vazio que o bairro enfrenta e descreve a marcha como um meio de reunir rostos do passado.
Mário Alves é um desses rostos. Marcha pela Bica desde 2005, quando ainda ali morava. Em 2012 mudou-se para a linha de Sintra e diariamente faz cerca de 50 quilômetros para ensaiar: “Tive de sair por questões profissionais e principalmente por ser difícil conseguir uma habitação digna para viver com família. Volto pela marcha e pelas minhas origens.”
A presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira, vê nas marchas o exemplo de como as coletividades e instituições lutam contra a descaracterização. “Por trás das marchas existe toda uma vontade para que os bairros não morram. Com a falta de moradores, as coletividades da Bica e do Bairro Alto podiam acabar com as marchas, mas nunca o fizeram”, refere.
A descaracterização cultural é visível também em Alfama. Este ano, de 50 marchantes, apenas três ainda moram no bairro. João Ramos, responsável há 20 anos pela marcha, lembra as ruas cheias de portugueses, ao som da Rádio Amália.
João nasceu na Pampilhosa da Serra (distrito de Coimbra), mas conheceu Alfama na década de 60, o suficiente para notar diferenças. “Há uma mudança cultural muito significativa. Na marcha sentimos isso quando regressamos do desfile na avenida e o bairro ou está vazio ou tem turistas que nem percebem o que está a acontecer”, conta.
Nos ensaios, voltam os moradores que foram obrigados a sair, mas mantêm o coração em Alfama. Bem alto, cantam “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.
Telma Silva trocou Alfama pela Graça há mais de 10 anos. “Há muita gente da marcha que já não mora aqui, inclusive eu. As casas são muito pequeninas e caras, com rendas a rondar os 1.000 euros mensais e os valores atuais do salário mínimo não dão para suportar essa despesa”, diz.
As marchas populares de Lisboa vão dar cor e movimento à Avenida da Liberdade na noite de 12 de junho, com cerca de 2.000 marchantes e 23 grupos. O tema da Grande Marcha deste ano está centrado no Parque Mayer, onde se deu o primeiro concurso das marchas, em 1932.