Presidente do Instituto Camões, Florbela Paraíba, falou à ONU News sobre o prestígio global do idioma; a língua é oficial para quase 300 milhões de pessoas em quatro continentes, além de várias organizações internacionais como União Africana, União Europeia, Mercosul etc.
Por Sara de Melo Rocha
O Dia Mundial da Língua Portuguesa, comemorado a 5 de maio pela Unesco, é mais do que uma celebração simbólica para a presidente Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. “É um motivo para fazermos uma reflexão sobre a nossa língua e o papel que a nossa língua tem no mundo”.
Em entrevista à ONU News, a embaixadora Florbela Paraíba destacou a importância da língua portuguesa como veículo de comunicação, cultura, conhecimento e aproximação entre povos. Ela mencionou a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp, as diásporas espalhadas pelo mundo assim como alundos do idioma.
Rede de ensino do português
O Instituto Camões tem vindo a consolidar uma rede global de ensino da língua, com 63 cátedras e 86 centros de língua portuguesa em diversos países. A entidade tem mais de 300 protocolos de cooperação e múltiplas parcerias com escolas comunitárias e instituições locais.
“É toda esta rede que promove não só o ensino da língua portuguesa, como a projeção da cultura de matriz portuguesa em todo o mundo”, afirmou a partir da sede do instituto em Lisboa.
A embaixadora realça ainda a importância da adaptação ao mundo digital e aos desafios da inteligência artificial. “Temos que ser protagonistas nesta revolução e não ficarmos reduzidos ao papel de utilizadores.”
Florbela Paraíba sublinha ainda o papel da língua como expressão de identidade e valores, sendo mais do que um código de comunicação. “Uma língua é um instrumento de projeção de valores e de uma visão que é muito própria de uma cultura.”
Sobre a ambição de elevar o português à língua oficial das Nações Unidas, ela considera que se trata de um caminho estratégico e coletivo. “Essa é uma pretensão assumida desde logo pelo governo português e é também uma pretensão que tem sido muito trabalhada no âmbito da Cplp e com outros parceiros. É um objetivo comum.”
500 milhões de falantes até 2100
A presidente do Instituto Camões reforça que o português já tem hoje estatuto de língua oficial em várias organizações internacionais, como a União Africana e o Mercosul e sublinha o potencial de crescimento. “Estamos a apontar para um potencial de 500 milhões de falantes até ao final deste século.”
A língua portuguesa, afirma Florbela Paraíba, continua a afirmar-se como uma ponte para o entendimento, a cooperação e a diversidade: “Muito mais importante do que dizermos que temos uma língua rica e promotora da paz, é que os outros a reconheçam assim.”
O Dia da Língua Portuguesa, celebrado a 5 de maio, foi criado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em 2009 e passou a Dia Mundial após a resolução da Unesco, em 2019.
Leia na íntegra a entrevista da ONU News com a embaixadora Florbela Paraíba, presidente do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua:
ON – Por que é importante celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa?
Florbela Paraíba – É uma celebração e um motivo para fazermos uma reflexão sobre a nossa língua e o papel que a nossa língua tem no mundo. O Dia Mundial da Língua Portuguesa, foi proclamado pela Unesco em 2019, mas já antes havia no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp, o Dia da Língua Portuguesa e das Culturas da Cplp e isso foi iniciado por volta de 2008. É uma marca e uma oportunidade de criar aqui um espaço para nós pensarmos qual é a nossa estratégia em relação à nossa própria língua, de que forma ela é relevante no mundo e quais são os novos caminhos que devemos trilhar, a partir da língua e da promoção da nossa cultura contemporânea no mundo inteiro.
E, por isso, é naturalmente uma data muito importante, não só para os 10 milhões de portugueses, mas para cerca de 260 milhões de pessoas que são falantes da língua portuguesa, sejam eles nos países da Cplp, sejam eles nas diásporas destes vários países por todo o mundo, sejam eles pessoas que falam português ou que querem aprender português, que estão a aprender português devido a questões profissionais, negócios, artísticas ou até mesmo questões afetivas, uma paixão pelo português ou por alguma coisa que os aproximou a nossa própria língua.
ON – Que trabalho desenvolve o Instituto Camões e quantos são pelo mundo?
FP – Temos cerca de 83 centros de língua portuguesa em todo o mundo. São instituições que estão dentro das universidades, algumas das mais prestigiadas do mundo, por todos os continentes.
Temos protocolos de docência, ou seja, acordos com essas universidades, que neste momento se estimam em cerca de 325 destes protocolos, que permitem que haja professores contratados por essas universidades para ensinarem o português. E depois temos também, todas as associações e escolas comunitárias que também oferecem o português, e ainda, e muito importante, as escolas portuguesas no estrangeiro.
Portanto, é toda esta rede que promove não só o ensino da língua portuguesa, como a projeção da cultura de matriz portuguesa em todo o mundo.
Para além do ensino presencial, que nós privilegiamos, porque a pandemia também nos veio ensinar que é muito importante e que não é completamente substituível por meios digitais, temos também cursos online, cursos de autoaprendizagem, que permitem que pessoas dos mais diversos pontos do mundo possam aprender o português.
É uma rede que mobiliza muita gente, que tenta chegar ao máximo de escolas e de pessoas e de universidades possível no mundo, e que necessita permanentemente de ser adaptada às geografias onde há mais interesse pelo português, que necessita permanentemente de valorização e de formação dos professores e daqueles que ensinam português, que implica também um esforço tecnológico constante.
Também é muito importante toda a parte de estímulo à investigação, porque as línguas são organismos vivos, e como todos os organismos precisam de ser estudados até mesmo para a sua própria promoção e para a sua própria evolução e produção científica nestas áreas.
É importante todo o apoio que nós damos em termos de, por exemplo, de tradução de obras portuguesas, de escritores portugueses no estrangeiro. Temos uma linha que é uma linha de tradução que é muito ativa e que, portanto, permite dar algum apoio financeiro a traduções de obras portuguesas para outras línguas.
As boas notícias são que nós, apesar de todas as limitações que há e que são normais, porque os recursos são finitos, vamos conseguindo dar resposta a este interesse e vamos estar muito, muito ativos também a nível das organizações internacionais. Para lhe dar um exemplo, criámos agora um leitorado junto da União Africana, a nível da própria oferta, a nível da formação dos tradutores.
As línguas para serem, de facto, utilizadas nos meios da diplomacia internacional é essencial que haja boas interpretações e boas traduções dos textos, para que se possa ser livremente utilizada e em igualdade de circunstâncias com outras línguas que são, nomeadamente com o inglês, que é uma língua praticamente franca.
ON – Que tipo de imagem projeta a língua portuguesa a nível mundial?
FP – Eu acho que as línguas transformam-nos sempre e nós somos moldados e transformados por elas. Uma língua, além de ser um instrumento de comunicação, é um instrumento de projeção de valores e de uma visão que é muito própria de uma cultura e a língua portuguesa projeta culturas, não só a cultura portuguesa, mas a cultura do Brasil, dos outros estados de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, da Guiné-Bissau, de Timor-Leste, da própria Cplp, o que nós conseguimos ser em comum, que tem também a Guiné-Equatorial como Estado-membro.
Portanto, projeta uma certa forma de estar no mundo, tem agregado a si uma quantidade de características que, mais uma vez, o que é importante para mim é que nos sejam reconhecidas, muito mais de nós as disseminarmos como uma espécie de propaganda. Toda esta questão das pontes, da abertura para o diálogo, da aproximação cultural, são valores intrínsecos na forma como nós comunicamos e como nós chegamos aos outros.
ON- Como olha para o percurso da íngua portuguesa enquanto idioma internacional?
FP – Nós vemos o português aqui no Camões – Instituto da Cooperação e da Língua como uma língua pluricêntrica, pluricontinental, multicultural e, portanto, com muitos polos de onde é feita uma evolução. E essa diversidade do português é, em si mesma, a sua riqueza e muitas vezes o motivo pelo qual ela consegue congregar tanto interesse da parte de públicos tão variados.
O português é uma língua que é falada não só por nós, cidadãos dos estados que têm a língua portuguesa como língua oficial, mas também como língua de herança, portanto, filhos das nossas diásporas, das nossas comunidades, como também como língua segunda, como língua estrangeira. É estratégico que o português seja cada vez mais uma língua integrada nos sistemas de ensino de outros países, como língua opcional, como nós em Portugal aprendemos o francês ou o espanhol ou o inglês.
E depois termos os meios técnicos, científicos, tecnológicos e, naturalmente, os recursos humanos que nós devemos valorizar: os nossos professores, as entidades públicas, as universidades, os escritores, os cantores e artistas, todos aqueles que promovem internacionalmente o português e ter esta rede bem construída de privados e públicos que levam a língua até todas as profissões, todas as áreas de saber e do conhecimento e que de facto a projetam no mundo, seja nas organizações internacionais, seja no espaço digital, seja agregando ao ensino da língua portuguesa toda a dimensão de inteligência artificial que é preciso nós fazermos e pensarmos como vamos fazer e, portanto, facilitar todas as formas de chegar com o português onde é possível e onde nós somos queridos.
Este dia também reflete muito o interesse que há na língua portuguesa, ou seja, o interesse que os outros veem em nós, na nossa língua. Muito mais do que se nós dizemos que temos uma língua muito rica, muito diversa, uma língua promotora da paz, do desenvolvimento, da criação de espaços de intercompreensão, de tolerância, muito mais importante do que isso é o facto de outros nos verem dessa forma, outros identificarem na nossa língua essas características, porque é isso que os aproxima naturalmente dela.
ON – Como é que o Camões olha e contribui para uma eventual campanha de tornar o português língua oficial das Nações Unidas?
FP – Essa é uma pretensão assumida desde logo pelo governo português e é também uma pretensão que tem sido muito trabalhada no âmbito da Cpl e com outros parceiros. Nós temos aqui uma cooperação que pretendemos sempre reforçar com o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, que está sediado em Cabo Verde e que pertence a este universo da Cplp, também com congéneres, por exemplo, no Brasil, com o Instituto Guimarães Rosa. Portanto este é um trabalho conjunto de todos aqueles que têm, cuja pátria ou mátria é a língua portuguesa. É um objetivo comum.
O que nós procuraremos fazer sempre é uma avaliação de todas as condições políticas, diplomáticas, económicas, financeiras, logísticas, que tornem possível nós chegarmos a esse objetivo, que eu estou convencida que um dia chegaremos.
Mas também é preciso dizer que a língua portuguesa já é a língua de trabalho e língua oficial de múltiplas organizações internacionais, sejam elas no âmbito das Nações Unidas, várias organizações e programas que têm o português como língua oficial, mas também não na União Europeia, portanto organizações que não estão nas Nações Unidas, mas que existem, ou outras organizações regionais como a UA, a União Africana, ou como o Mercosul, ou como a Cedeao, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, o Sadc, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.
E, portanto, este é um caminho que nós estamos muito empenhados, como não poderia deixar de ser, mas que é um caminho que só será possível naturalmente porque a nossa língua representa hoje em dia já 260 milhões de falantes em todo o mundo e tem um potencial de crescimento enorme.
Segundo as projeções demográficas das Nações Unidas, estamos a apontar para um potencial de 500 milhões até o final deste século, o que é realmente uma duplicação praticamente do número hoje em dia de falantes.
Mas é também importante quando falamos em projeções demográficas e em aspetos quantitativos, dizer que nós também estamos preocupados naturalmente com a qualidade do português.
Queremos aqui ensinar todos os dias um português que permita às pessoas, não só expressarem-se no básico, mas poderem ler livros, poderem escrever poesia ou apresentar peças de teatro ou escrever, que é muito importante também, as suas teses científicas em língua portuguesa. Ou seja, que seja de facto um português que dê recursos para as pessoas fazerem todas as suas atividades, das mais técnicas e específicas que existirem em língua portuguesa e não é reconhecimento convivial da nossa língua.
ON – Como é que a língua portuguesa se tem adaptado às novas plataformas de inteligência artificial e como se pode proteger a sua essência?
FP – Qualquer revolução civilizacional, e parece-me que estamos praticamente a falar a esse nível, não pode nem deve nunca esquecer as pessoas e o papel que elas têm. Não vejo como é que a inteligência artificial vai substituir o ser humano. Eu acho que é preciso nós construirmos e retirarmos da tecnologia aquilo que nos pode ajudar, minimizando os efeitos potencialmente menos positivos que ela possa ter sobre a nossa sociedade.
Para isso é preciso informação, é preciso as pessoas estarem muito informadas e nós sabemos exatamente o que é que queremos, que produto vamos colocar lá, a informação que nós vamos colocar nos sistemas, os dados que vamos introduzir para que depois o resultado seja o resultado que nós queremos, editado por nós, pelas nossas próprias éticas, pelos nossos valores e não o resultado de escolhas feitas por outros.
É muito importante, creio eu, nós sabermos exatamente, conhecermos e queremos que quem estude a nossa língua desse ponto de vista – da adaptação a meios tecnológicos do hoje e do futuro – para sermos nós os atores, para sermos nós os protagonistas desta revolução e não ficarmos reduzidos ao papel de utilizadores. Nós não podemos ser só usuários desta tecnologia, temos que ser de facto e criar as condições para ter gente que seja realmente protagonista nesta revolução.