Arábia Saudita – um aliado incômodo

Por Carlos Fino

A execução, neste começo de ano, do xeique Nimr al-Nimr, líder da minoria xiita da Arábia Saudita, desencadeou uma onda de protesto no Médio Oriente e levou vários países ocidentais a expressarem “apreensão” face à crescente aplicação da pena de morte pelo regime de Riad.

A crítica mais veemente veio do Irão, cujo líder supremo, Ayatollah Ali Khamenei, comparou o regime saudita ao Estado Islâmico. O porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Hossein Jaber, afirmou mesmo que a Arábia Saudita vai pagar um “preço elevado” pela execução do dignitário religioso xiita.

Com 56 anos, Nimr era figura destacada da comunidade xiita, predominante no sul e leste do país, a qual tem exigido de forma cada vez mais aberta, desde a Primavera árabe de 2011, o “fim da discriminação” – religiosa, mas também econômica, social e política – de que os seus membros são objeto por parte da maioria sunita que governa o país com mão de ferro há quase um século.

Juntamente com Nimr, foram decapitadas outras 46 pessoas – condenadas, segundo o governo saudita – por terem “adotado a ideologia radical takfiri”, juntando-se a “organizações terroristas” e implementando vários “atos criminosos”.

O crescente número de execuções – incluindo (cerca de 40%) por crimes não letais – é apenas um dos aspectos da mudança de atitude a que vimos assistindo – tanto no plano interno como externo – desde que o rei Salman, da casa Saud, com 70 anos, assumiu o poder em Janeiro do ano passado.

Desfrutando da enorme riqueza que lhe asseguram os poços de petróleo, a Arábia Saudita sempre fomentou a variante fundamentalista e ultra-conservadora do Islão conhecida por Wahhabismo.

Foram os seus petrodólares que ajudaram a criar e manter os mujahedin, que haveriam de derrotar os soviéticos no Afeganistão, alimentaram boa parte da guerra entre o Iraque e o Irão, nos anos oitenta, e incrementaram grupos terroristas islâmicos no Cáucaso e na Ásia Central.

Mas Riad sempre pautou a sua atuação por uma grande cautela e discrição, que agora parecem ter desaparecido, dando lugar a uma política de confronto cada vez mais ostensiva e desafiadora.

Primeiro, veio a aposta na queda do preço do petróleo, visando criar dificuldades à concorrência – designadamente dos produtores americanos de gás de xisto e canadenses do Árctico, e criando também problemas sérios à Rússia, Venezuela, Equador e Brasil.

Uma opção que parece ter funcionado para além do previsto, acabando por criar dificuldades orçamentais à própria Arábia Saudita, que se viu obrigada a recorrer às reservas financeiras para  cobrir os 130 mil milhões dólares de défice registados em 2015.

Situação impensável num país que parecia até agora nadar em dinheiro e que levou já o FMI a advertir Riad do perigo real de ver o pecúlio do Tesouro esgotar-se em poucos anos.

Seguiu-se (com o apoio dos Estados Unidos) a intervenção na guerra civil do Iémen – bombardeamentos aéreos, bloqueio marítimo e algumas tropas no terreno – para tentar contrariar a ascensão ao poder do grupo xiita dos houthis, a pretexto de que estes seriam sustentados pelo Irão. Resultado – uma situação humanitária catastrófica (5000 mortos, incluindo 500 crianças), a ponto de as Nações Unidas quererem investigar possíveis crimes de guerra.

Ao mesmo tempo, Riad prosseguiu o apoio a grupos islamitas de oposição na Síria, visando derrubar o presidente Assad, o que acabaria por levar à intervenção direta da Rússia e também do Irão, cada um procurando defender as respectivas posições estratégicas.

Criou-se assim um novo impasse, com o prolongamento do conflito, que já provocou 250 mil mortos e acabou por desencadear uma onda de refugiados sem precedentes rumo à Europa, desarticulando o sistema Shenguen de livre circulação e provocando sérias divisões na União Europeia, ainda a sofrer os efeitos de uma prolongada crise econômica e financeira.

A tudo isto, acresce a intensificação da repressão política e religiosa interna, de que a execução do xeique Nimr al-Nimr é agora o máximo expoente,  ameaçando aprofundar ainda mais as tensões em todo o Médio Oriente.

Desde que, em 1945, Roosevelt declarou  a defesa da Arábia Saudita “vital para a defesa dos Estados Unidos” – trocando garantias firmes de segurança por acesso ao petróleo e bases militares – o reino da casa Saud foi quase sempre um apoio seguro e discreto dos ocidentais. Agora, porém, parece ter-se transformado num aliado cada vez mais incômodo.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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