100 dias de Governo: Um começo difícil com guerra, inflação e crises internas

Da Redação com Lusa

 

Os primeiros cem dias do Governo de maioria absoluta do Partido Socialista foram marcados pelas consequências da guerra na Ucrânia, com aumento galopante da inflação, e por crises internas na saúde, nos aeroportos e na própria equipe do executivo português.

“Estamos ainda a enfrentar a pandemia, a sarar as feridas que abriu, e já temos de combater os efeitos da guerra desencadeada pela Rússia com a invasão da Ucrânia. A guerra, não o escondamos, acrescenta um enormíssimo fator de incerteza às nossas vidas, à nossa economia familiar, à saúde das nossas empresas e, por isso, aos nossos empregos”, preveniu António Costa logo no discurso de posse do XXIII Governo Constitucional em 30 de março.

No fim de maio, o Governo fez aprovar no parlamento em votação final global a sua proposta de Orçamento do Estado para 2022, cujo chumbo em outubro do ano passado provocou uma crise política e a convocação de eleições legislativas antecipadas, que o PS venceu em 30 de janeiro com maioria absoluta.

Com a guerra na Ucrânia, o Governo procedeu nesse Orçamento à atualização do cenário macroeconômico, mas mesmo assim apontou para uma previsão otimista da inflação na ordem dos 4%, partindo da convicção (partilhada com o Banco Central Europeu) de que este fenômeno seria conjuntural e que conheceria um abrandamento a partir do segundo semestre do ano.

Para junho, o Instituto Nacional de Estatística (INE) estima já uma taxa de inflação de 8,7%. Em paralelo, os juros da dívida nacional atingem os 2,3 – o valor mais alto desde setembro de 2017, acompanhando a tendência da zona euro.

Apesar das críticas de todas as forças da oposição, o Governo e PS têm recusado qualquer aumento suplementar de salários e de pensões, sustentando a tese de que essa via contribuiria para gerar uma espiral inflacionista no país.

 Em sucessivas intervenções públicas, o ministro das Finanças, Fernando Medina, tem também alertado para o perigoso impacto da subida dos juros num país endividado como Portugal, defendendo que a solução tem de passar por uma rápida consolidação orçamental, com descida significativa do défice e do peso da dívida em percentagem do PIB.

Em alternativa, como resposta à inflação, o Governo apostou em medidas de “mitigação” dos aumentos dos preços, sobretudo nos combustíveis, com uma descida do ISP (Imposto sobre Produtos Petrolíferos), e na concessão de apoios diretos às empresas do ramo agroalimentar ou grandes consumidoras de energia e a famílias mais carenciadas (o cabaz alimentar de 60 euros em cada três meses).

Na frente europeia, em conjunto com a Espanha, Portugal conseguiu fazer aprovar um mecanismo para estabelecer um preço máximo para o gás natural usado na produção de eletricidade.

No entanto, a oposição continua a considerar insuficiente o impacto global destas medidas e denuncia a perda de poder de compra da generalidade dos cidadãos.

Além da difícil conjuntura externa econômico-financeira, o Governo confrontou-se com situações de caos nos aeroportos por causa da falta de elementos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), força de segurança que o executivo socialista prevê extinguir a prazo.

No final de maio, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, anunciou um plano de contingência para evitar bloqueios nos atendimentos dos aeroportos – plano que na segunda-feira passada atingiu a “máxima afetação” em termos de agentes envolvidos e que também passou pela adoção soluções tecnológicas para evitar facilitar o fluxo de passageiros.

Já na saúde, a partir do fim de semana prolongado do Dia de Portugal, 10 de Junho, vários serviços de urgência em diversos pontos do país começaram a encerrar por falta de médicos. Estas falhas ao nível da cobertura nos serviços de urgência levaram o PSD e o Chega a pedir a demissão da ministra Marta Temido, enquanto Bloco e PCP protestaram contra a falta de investimento do Governo no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Tal como José Luís Carneiro, também Marta Temido anunciou como resposta um plano de contingência para o período do verão, a par de uma comissão de acompanhamento para monitorizar as capacidades dos serviços de urgência hospitalares e de uma negociação sindical para aumentar as remunerações dos médicos que acumulam muitas horas de urgência.

Nesta questão, o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou esperar que estes problemas sejam pontuais e registrou que o primeiro-ministro reconheceu os problemas no setor da saúde.

Já na semana passada, aconteceu talvez o mais grave problema interno nas equipas governativas formadas por António Costa desde novembro de 2015.

No passado dia 29, a dois dias do início do congresso do PSD, que marcou a entrada em funções do novo presidente Luís Montenegro, o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, fez publicar por via de um seu secretário de Estado um despacho sobre a futura solução aeroportuária para a região de Lisboa sem aparente conhecimento do primeiro-ministro, que se então se encontrava na cimeira da NATO em Madrid.

Nessa mesma noite, em entrevistas na RTP e na SIC Notícias, Pedro Nuno Santos assumiu as soluções de construção imediata do aeroporto do Montijo e mais tarde do aeroporto de Alcochete. Mas foi Pedro Nuno Santos foi ainda mais longe: Contrariou frontalmente a posição de António Costa, segundo a qual esta matéria requer um consenso com o maior partido da oposição, e assumiu que o Presidente da República não tinha sido consultado sobre essa solução.

Na manhã seguinte, antes de regressar a Lisboa, o primeiro-ministro determinou ao ministro que revogasse o seu despacho e reiterou que a solução do aeroporto deveria partir de um consenso com o PSD, acrescentando, ainda, que se trata de uma matéria em relação à qual o Presidente da República tem de ser informado.

Face ao teor da posição de António Costa, a generalidade dos observadores políticos antecipou que este caso terminaria com a demissão do ministro, mas isso não aconteceu.

Já em Lisboa, António Costa recebeu Pedro Nuno Santos. Este regressou logo a seguir ao seu ministério, fez uma declaração pública a admitir “uma falha relevante” da sua parte, pediu desculpas aos seus colegas de Governo e adiantou que continuaria em funções.

Pouco depois, foi a vez de António comparecer perante os jornalistas para explicar a sua decisão. Salientou que Pedro Nuno Santos tinha cometido “um erro grave”, mas que foi “prontamente corrigido”, manifestou a convicção de que o seu ministro não tinha agido de “má-fé” e, como tal, a “confiança política estava totalmente restabelecida”.

A concluir este episódio, o Presidente da República deixou um aviso: “É o primeiro-ministro que, naturalmente, é responsável pela escolha, mais feliz ou menos feliz, pela avaliação que a cada momento faz, mais feliz ou menos feliz, dos seus colaboradores relativamente às melhores hipóteses que têm para realizar os objetivos”.

Internacional

O primeiro-ministro entrou numa intensa agenda internacional mal se libertou dos processos de formação do Governo e da apresentação do Orçamento, tendo encontros entre maio e junho com todos os líderes dos principais países europeus.

Perante a sucessão de casos que abalou o XXIII Governo Constitucional nas últimas semanas, uma das principais questões em reflexão no PS é apurar em que medida as frequentes saídas do país de António Costa tiveram consequências no funcionamento interno do executivo, ou se, pelo contrário, o problema de fundo estará antes relacionado com uma excessiva imagem de continuidade transmitida pela nova equipe governativa.

No encerramento da recente Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, o Presidente francês, Emmanuel Macron, durante um passeio à beira Tejo com o chefe de Estado português, viu os jornalistas rodearem Marcelo Rebelo de Sousa para lhe obterem um primeiro comentário sobre o desfecho da crise com o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos – uma crise que terá apanhado António Costa de surpresa quando se encontrava na cimeira da NATO em Madrid.

Pouco depois desse passeio com Marcelo Rebelo de Sousa, Macron encontrou-se com António Costa no MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia) e confidenciou a alguns dos presentes que também ele estava há vários dias longe de Paris, que ia regressar nessa noite à capital francesa e que ainda tinha um Governo para formar.

Também num dos intervalos da cimeira da NATO, na semana passada, em Madrid, durante uma visita ao Museu do Prado, o primeiro-ministro italiano, Mário Draghi, aproveitou esse momento com permissão de acesso a rede telefônica e foi apanhado pelos fotógrafos sentado num banco, longe dos outros chefes de Estado e de Governo, a procurar resolver uma crise interna no seu executivo.

Os casos de Macron e de Draghi, tal como o de Costa, de acordo com um elemento do núcleo político do Governo, atestam que a agenda internacional é cada vez mais exigente para os líderes políticos europeus. E a crise aberta pela guerra na Ucrânia só agravou essa circunstância.

Desde o primeiro dia dos cem já cumpridos pelo XXIII Governo Constitucional, que se discute se António Costa vai cumprir o seu mandato de primeiro-ministro até outubro de 2026, ou se sai a meio da legislatura para desempenhar um cargo europeu.

 A questão foi lançada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, logo na cerimônia de posse em março, advertindo António Costa que será difícil a sua substituição a meio da legislatura.

“É o preço das grandes vitórias, inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas. E é sobretudo o respeito da vontade inequivocamente expressa pelos portugueses para uma legislatura. Agora que ganhou, e ganhou por quatro anos e meio, tenho a certeza de que vossa excelência sabe que não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições, possa ser substituída por outra a meio do caminho”, declarou.

Várias semanas depois, numa entrevista promovida pelo Clube de Jornalistas, em parceria com a agência Lusa, António Costa procurou afastar a questão levantada pelo chefe de Estado.

“Em circunstância alguma em 2024, quando quer que seja, eu estarei disponível para ser presidente da Comissão Europeia. Onde me sinto útil neste momento e até outubro de 2026 é aqui em Portugal”, declarou.

Mas as dúvidas não ficaram completamente afastadas, até porque os mais próximos de António Costa conhecem o seu gosto pela agenda internacional.

Entre maio e junho, tirando o caso de Itália, o primeiro-ministro português deslocou-se às principais capitais europeias e foi recebido pelos líderes dos maiores países europeus. Esteve com Pedro Sánchez em Madrid, com Olaf Scholz em Hannover, com Emmanuel Macron em Paris e com Boris Johnson em Londres.

Fez ainda um périplo pela Europa de Leste que o levou primeiro à Romênia, onde visitou as tropas portuguesas em missão naquele país, e encontrou-se a seguir com o líder do executivo polaco, Mateusz Morawiecki. Da fronteira polaca, partiu depois de comboio até Kiev para se reunir com o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.

Entre maio e junho, além dos encontros bilaterais atrás referidos, António Costa esteve em Bruxelas em duas reuniões do Conselho Europeu, esteve também no Parlamento Europeu em Estrasburgo no encerramento da conferência sobre o futuro da Europa e, mais recentemente, em Madrid, na Cimeira da NATO.

E o ritmo não abranda. No domingo, António Costa parte para Maputo para a Cimeira Luso Moçambicana e regressa logo na quarta-feira.

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