Uma comunidade que vive pelo lixo e morre pelo lixo exposto por fotógrafo premiado

Exposição “Living Among What’s Left Behind” será inaugurada em Lisboa dia 06 de abril, do fotojornalista Mário Cruz, premiado no World Press Photo 2019 na categoria Ambiente. A fotografia distinguida pelo World Press Photo mostra uma criança que recolhe materiais recicláveis, para obter algum tipo de rendimento que lhe permita ajudar a família, deitada num colchão rodeado por lixo que flutua no rio Pasig, que já foi declarado biologicamente morto na década de 1990. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Da Redação
Com Lusa

Um rio de lixo nas Filipinas é o meio de subsistência e a sentença de morte dos milhões que vivem em barracas à sua volta, uma realidade documentada pelo fotojornalista Mário Cruz, que chega sábado a exposição e livro.

“Living Among What’s Left Behind” é o resultado de um trabalho que levou Mário Cruz a viajar até às Filipinas, à cidade de Manila, para fotografar o rio Pasig, atulhado de lixo e declarado morto na década de 1990, mas sobretudo para retratar a vida das comunidades que vivem junto e sobre ele.

Quando se entra na exposição – que vai estar patente até 26 de maio no Palácio Anjos, em Algés -, a primeira fotografia que se vê faz uma espécie de introdução ao tema, mostrando em primeiro plano uma comunidade de barracas à beira de um rio de lixo, em contraste com os arranha-céus de Manila, ao fundo.

São milhões os filipinos, a maioria vindos do interior do país em busca de trabalho e de uma vida melhor em Manila, que acabaram a viver e a sobreviver no meio do lixo e graças ao lixo que eles próprios produzem e a seguir recolhem, num ciclo que faz aumentar catástrofes, como as cheias que atiram ondas de lixo para dentro das casas, e diminuir a qualidade e esperança de vida.

Tentando perceber “que ondas eram aquelas e de onde vinha o lixo”, Mário Cruz viajou até Manila e, com a ajuda da Comissão de Reabilitação do Rio – entidade governamental que tenta tirar o lixo dos rios –, infiltrou-se na comunidade, o que não é fácil, se se atender ao facto de ser uma região onde a ordem é mantida por criminosos, que chegam a armar crianças com armas de plástico para afugentarem visitas indesejadas, como fotógrafos, contou Mário Cruz, durante a apresentação da exposição à imprensa.

“Percebi que é a realidade para milhões de pessoas há muitas gerações. [O rio] continua extremamente poluído e sobretudo nos estuários, onde existe mais densidade populacional e onde muitas vezes já nem se consegue ver a água”, relatou à Lusa.

As casas – barracas de madeira, chapa e ferro – empilhadas e amontoadas sobre o rio são construídas pelos próprios moradores, pelo que, apesar do alargamento dos estuários dos rios, as sucessivas construções têm levado ao seu estreitamento, aumentando a frequência e intensidade das cheias que provocam a morte, sobretudo de crianças, cujos corpos se tornam difíceis de encontrar no meio do lixo.

“A mim interessa-me sempre a parte humana, daí ter-me concentrado nas comunidades, a mim interessa-me sobretudo as consequências, quero ir para além da superfície. O lixo está presente neste trabalho, o rio também está, mas o meu principal foco foi as comunidades, isso interessou-me sobretudo por perceber que são as vítimas e ao mesmo tempo os culpados”, declarou.

“Torna-se curioso porque muita destas pessoas têm o problema do lixo, mas ao mesmo tempo o lixo é a solução para a vida delas: passam grande parte do dia a apanhar materiais para reciclar no rio que eles próprios poluem. Estão presas a este círculo vicioso de poluição-alimento já há muitos, muitos anos”, disse, acrescentando que “é difícil as futuras gerações conseguirem sair deste rio de lixo e desta vida a que parecem que já estão condenadas antes de nascerem”.

A morte também chega até estas pessoas através do seu trabalho, um trabalho que salva e condena, e uma das fotografias, exposta em grande formato numa parede, retrata precisamente “um dos casos mais dramáticos”, o de um jovem de 21 anos, que apanha lixo desde os 3 e que, atualmente, tem os pulmões obstruídos – devido a nano partículas inaladas mas também aos vapores tóxicos libertados por um rio putrefacto, onde por vezes também flutuam pessoas e animais mortos.

A imagem mostra um jovem magro, ligado a oxigênio e deitado numa cama, sobre chão de pedra e gravilha, sem absolutamente mais nada à volta.

Mário Cruz explica: A família do jovem recebe 30 euros por mês, o tratamento de que o jovem precisa custa 300 euros, portanto tiveram que vender tudo o que tinham, incluindo os tapetes.

A fotografia que ocupa posição central na mostra é a imagem que valeu a Mário Cruz a nomeação para um dos três primeiros lugares na categoria ambiente do World Press Photo, o mais prestigiado prêmio de fotojornalismo do mundo, a de uma criança sobre um colchão que flutua sobre o lixo.

A fotografia está exposta sozinha numa sala, cujo chão está coberto de lixo plástico e sobre o qual os visitantes são convidados a caminhar, uma forma que o fotógrafo encontrou de “alertar e criar impacto”.

“Quem visita a exposição, se quiser ver a fotografia de perto, vai ter que enfrentar o problema, vai ter que atravessar o lixo de plástico. Isso é muito importante para nós, que as pessoas saiam daqui com outra ideia de sustentabilidade, que estejam alerta. A maneira como comunico através da fotografia é um bocado isso, é alertar. Eu, ao longo dos anos, tenho gritado muito através da fotografia”.

A exposição é esse alerta, mas é-o sobretudo o livro que vai ser lançado na mesma altura, um “objeto que perturba” e que “não é uma viagem agradável, mas é uma viagem absolutamente necessária”.

As capas foram produzidas através de 160 quilos de lixo, todas foram feitas à mão e cada cópia tem uma capa original.

“Dessa forma queremos continuar a onda de alerta: quando a pessoa tocar no livro vai tocar automaticamente no problema”.

Para este trabalho, Mário Cruz, que sempre trabalhou a preto e branco, explorou outras técnicas, como a cor, da mesma forma que reservou uma parte da exposição para fotografias instantâneas, de retratos das famílias que habitam aqueles locais.

O vídeo também ganha lugar neste espaço, para transmitir alguma ideia de movimento, designadamente para mostrar a dificuldade que os “guerreiros do rio” – responsáveis pela sua limpeza – sentem ao tentar atravessá-lo.

Mário Cruz – que é fotojornalista da agência Lusa, mas desenvolveu este projeto a título pessoal – confessa que gosta de pensar que faz “fotografia de intervenção”, uma fotografia que tem que ser partilhada, por isso espera que os visitantes “fotografem o mais possível e mandem a mensagem para fora, para o maior numero de pessoas”.

“Quando digo fotografia de intervenção é uma fotografia que pretende mudar alguma coisa. Acredito que estas fotografias do rio Pasig podem ajudar a mudar alguma coisa nesse aspeto. O melhor resultado possível era eu conseguir voltar ao rio Pasig daqui a alguns anos e poder fotografar o rio de outra forma”.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: