Educação pública se iniciou durante processos de independência na América do Sul

Por Crisley Santana
Do Jornal da USP

Entre os anos 1810 e 1830 as então chamadas Américas Espanhola e Portuguesa, no caso do Brasil, passaram por processos de independência. Isto é, os territórios deixaram de ser administrados pelos reinos da Espanha e de Portugal. Pensar em como seria a educação nos países que se formavam esteve entre as prioridades dos governos independentes, demonstra o estudo Um projeto educacional nas independências: a circulação do plano de ensino mútuo na América do Sul (1810-1830).

A pesquisa é fruto da tese entregue em 2020 por Laís Olivato na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo. A historiadora falou ao Ciclo22 sobre o método pedagógico adotado pelos governos da época e como ele reverbera nos atuais sistemas de ensino.

O conceito de ensino mútuo está relacionado a um método que envolve, além de um professor, monitores para auxiliar estudantes em uma sala de aula. Ele teria sido criado pelo quaker (ligado ao grupo religioso de mesmo nome) Joseph Lancaster (1778-1838) durante a Revolução Industrial na Inglaterra.

A pesquisadora conta que as crianças ficavam pelas ruas londrinas enquanto os pais trabalhavam nas fábricas. Assim, Lancaster desenvolveu uma atividade para educá-las. “Ele ficava com as crianças em troca de algumas moedas. Ele organizava essas crianças para aprender a ler e escrever com base na Bíblia, porque por meio dela essas crianças aprenderiam tanto a ler e escrever como aprenderiam sobre a moral religiosa protestante”, contou Laís.

Segundo a pesquisadora, a Bíblia era o principal instrumento de ensino porque não havia material didático como os atuais, além de não haver separação entre política e religião, como atualmente. Papel e caneta só eram entregues aos estudantes que alcançassem níveis considerados avançados de ensino, devido aos altos preços de tais materiais.

“As crianças tinham que copiar trechos da Bíblia na areia e depois na ardósia. Por último, vinham papel e caneta porque eram mais caros e poucas crianças chegavam lá. Ele [Lancaster] não tinha dinheiro e nem os pais daquelas crianças tinham para comprar esses materiais”, afirmou a pesquisadora.

O método na formação dos Estados da América
Lancaster mantinha as atividades pedagógicas a partir de fontes filantrópicas, ou seja, por doações. Assim, o inglês realizava propagandas sobre o sistema empregado por ele. Até que esses anúncios chegaram às Américas, sem ligação com filantropias, como na Inglaterra, mas como um sistema de Estado.

“Quando chega à América, o sistema chega a países que não eram protestantes, mas católicos, e também uma coisa que os católicos não faziam era a leitura direta da Bíblia, porque eles precisavam da interpretação de uma pessoa que estudou. No caso, um padre. Então, isso foi um problema na adoção do método de ensino mútuo”, explicou Laís.

A adoção do método só se tornou mais aceita após a chegada de missionários, como o escocês James Thomson. O fato de falar espanhol e ser um bom articulador auxiliou na disseminação do método nas Américas, como afirmou a historiadora.

“Thomson se articula com membros da Igreja Católica que eram favoráveis ao projeto de independência das Américas e são esses membros da igreja que vão ajudar na mediação do Thomson com os grandes líderes da independência para vender o plano de ensino mútuo, como Simón Bolívar (1783-1830), na Venezuela.”

A pesquisadora relatou que há diferenças entre a adoção do método da América Espanhola em comparação com a América Portuguesa, atual Brasil. Um exemplo são os tipos de castigos que eram aplicados a crianças consideradas indisciplinadas. Na América Espanhola, a falta de disciplina levava estudantes a julgamentos realizados por outros estudantes. Já na América Portuguesa, os castigos eram físicos.

“Nos manuais que eu pesquisei tinha ‘se um aluno cometeu uma falta, foi indisciplinado, a gente vai amarrar as mãos e os pés dele; vai pendurar ele no cesto, no alto da sala, como uma gaiola de passarinho, para os outros rirem dele’. Então é uma outra natureza de castigo”, afirmou Laís, ressaltando a relação com a cultura escravocrata que permaneceu no País após a abolição do trabalho escravo.

Em 1827, o Brasil passou a incluir na lei que todas as escolas de cidades grandes deveriam passar a adotar o ensino mútuo como método. Porém, como cada província podia administrar o ensino, o sistema ficou disperso.

Nos dias atuais, a pesquisadora observa heranças do método em grandes sistemas de ensino, especialmente ligados à preparação de estudantes para o vestibular. “O professor do cursinho dá uma grande aula para centenas de alunos e as dúvidas são tiradas em grupos individualizados pelo monitor. Então, enquanto prática educacional, a gente tem muita coisa do ensino mútuo”.

A pesquisadora e a pesquisa

Laís Olivato é historiadora, formada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e professora no Colégio Dante Alighieri, em São Paulo. Sua pesquisa foi realizada com bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o que a auxiliou a investigar o assunto em arquivos de diversos países.

“Com a bolsa eu consegui consultar arquivos na Argentina, morei lá um mês e pesquisei bastante, acho que em uns cinco ou seis arquivos. Depois eu consegui ficar na Colômbia por 15 dias. No Brasil, consegui pesquisar no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte”, disse.

Após as pesquisas nas Américas, a pesquisadora percebeu a necessidade de investigar documentos em países europeus ligados ao tema, conforme relatou. “Em Londres, eu fui na associação britânica que espalhou o ensino mútuo na América, a British and Foreign School Society. Depois eu fui para a França e pesquisei o material que estava na Biblioteca Nacional. Em Lisboa [Portugal], só 20% dos arquivos estavam catalogados, então minha pesquisa teve esses entraves”.

Mais sobre o projeto Ciclo22 da USP no site: ciclo22.usp.br.

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