Cineasta defende que interior de Portugal continua tão abandonado como há 50 anos

Da Redação
Com Lusa

O cineasta português José Vieira, que filma o que o preocupa como os fenômenos da emigração, afirma que o interior do país continua a desaparecer, à semelhança das décadas de 1940/1960, quando muitos partiram à procura de vida melhor.

“Nunca refleti muito sobre a interioridade. Sobre a emigração, sim. Mas o que é certo é que os emigrantes vinham das aldeias do interior do país. Uma ou outra pessoa vinha de Lisboa, mas poucas. Já filmei em Trás-os-Montes e há lá aldeias em que [a situação] é pior do que aqui [em Viseu], porque foi tudo embora”, disse José Vieira durante o festival Vista Curta, do Cineclube de Viseu.

O festival decorre até sábado e tem o realizador como convidado, dedicando um ciclo ao seu cinema documental.

No entender de José Vieira, “a interioridade é um problema muito importante em Portugal” e, mesmo frisando que não é “especialista de nada”, apesar do curso de Sociologia o ter ajudado no processo de criação dos filmes sobre emigração e na sua abordagem, acredita que “o país está a deslizar para o mar”.

“Faço filmes sobre o que me preocupa. [A interioridade] é uma preocupação, porque foi dessas aldeias que as pessoas foram embora para França. Não sei quais são as políticas portuguesas sobre este aspeto, sobre a desertificação do interior de Portugal, não conheço, portanto não posso falar sobre isso, mas todas as aldeias do interior onde filmei (…), estão todas a desaparecer”, registou.

O realizador, nascido em Oliveira de Frades, distrito de Viseu, está radicado em França desde os 7 anos, para onde partiu com a família, quando esta emigrou, em 1965, condição sobre a qual reflete, em longas-metragens como “A Fotografia Rasgada” (2002), O Pão que o Diabo Amassou (2012) e ‘A Ilha dos Ausentes’ (2016).

“Na década de 40, as pessoas que viviam nas serras de Portugal eram consideradas primitivas. Encontrei essa palavra escrita num relatório que encontrei sobre os habitantes [destes locais]. Quer dizer, o Estado tinha um olhar colonial sobre as serras e essas aldeias”, contou José Vieira à Lusa, a propósito da interioridade e da investigação que está a fazer, para o projeto cinematográfico que quer apresentar em público em 2020, sobre os baldios.

O realizador encontrou o relatório durante o trabalho de investigação para este seu novo filme, e afirma que, nesse documento, “as pessoas eram chamadas de primitivas”; dizia-se, nesses documentos, “que, apesar de até serem simpáticas, [os habitantes] não compreendiam nada”, desconheciam “o progresso” e não se reconhecia o valor do trabalho local, defendendo-se que, “de toda a maneira, a pastorícia não [era] grande coisa”.

“Ora, num país [numa região] onde o trabalho é o valor supremo, onde as pessoas andam a guardar o gado… e isso não é considerado trabalho?”, escandaliza-se o realizador. “Era uma realidade que eles, os senhores que escreviam os relatórios, queriam fazer desaparecer”, considerou.

E deu como exemplo “o relatório de um engenheiro florestal, feito em 1957, que parece exatamente como se estivesse em África a fazer um relatório sobre africanos”.

“O regime estava sempre a pôr à frente a ruralidade, [a dizer que] o fato de ser pobre, humilde, trabalhador, viver no campo era a coisa mais bonita do mundo”, recordou José Vieira à Lusa, aludindo ao discurso da ditadura, à “Lição de Salazar”, aos cartazes que elogiavam a modéstia do povo, de natureza respeitosa e acatada.

Quando foi votada a lei do povoamento florestal, em 1938, “começou-se a desenvolver um discurso do regime, da direção dos serviços florestais, de que a serra não podia ficar assim tão atrasada, porque não havia estradas, não havia nada”, lembrou José Vieira.

Para o cineasta, que anualmente percorre o interior do país, no âmbito da investigação para os seus projetos, a realidade permanece “bem presente, porque o interior continua ao abandono” e um “bom exemplo disso são os incêndios”.

José Vieira lembrou “que começou a haver mais incêndios a partir da década de 80, depois de as pessoas terem emigrado”. Antigamente os incêndios não atingiam tão grandes dimensões, porque “as pessoas estavam lá”.

“Há 40 anos que ando a ouvir os mesmos discursos, e Portugal tem cada vez mais incêndios, arde cada vez mais. E a impressão que me dá lá [em França], é que até agora nada foi feito, embora sobre a política de Portugal não possa falar, porque [a] desconheço (…). Mas as pessoas sentem-se abandonadas”, assumiu.

“Há uma angústia dos incêndios, as pessoas têm medo”, prosseguiu, porque “os incêndios passam e tornam a passar e nada é feito”, deixando a “impressão [de] que é sempre a mesma lengalenga, os mesmos discursos e no final nada muda”.

Parece haver “uma espécie de desprezo por essas pessoas”, afirma José Vieira, interpretando naqueles com quem se cruza “uma espécie de desmoralização”: “Já não acreditam muito nos discursos, não veem atos concretos, apesar de haver sempre coisas que se fazem”.

A título de exemplo lembrou a altura em que Portugal entrou na então Comunidade Europeia (1986), onde “se sabia perfeitamente bem que essa agricultura não podia resistir e nada foi feito, porque há ali uma qualidade de produtos, que não vêm dos outros sítios”.

“Mas fizeram o quê? Umas ajudazitas? Cem euros por ano, para quem tem umas cabras? O que é isso?”, interrogou-se.

“As pessoas produzem vitelo durante o ano, mas as pessoas vendem a vitela pelo mesmo preço há 20 anos. É uma carne de qualidade, mas não conseguem vender mais cara do que isso. Isso não é normal! Às vezes até baixou [o preço do produtor]. As pessoas vivem a trabalhar para ganharem praticamente nada, vivem ligeiramente melhor [nas últimas décadas], porque há a ajuda das reformas”, acrescentou.

José Vieira tem passado a vida a filmar comunidades de emigrantes e, em 2014, apresentou a longa-metragem “Souvenirs d’Un Futur Radieux” (“Memórias de Um Futuro Radioso”), onde mostra a realidade dos emigrantes romenos em França, já depois do ano 2000, e cruza essas imagens com as dos emigrantes portuguesas, 40 anos antes, nos mesmos ‘bidonvilles’ (bairros de lata), nos arredores de Paris.

O filme apresenta duas realidades distintas no tempo, mas iguais na realidade vivida pelos dois povos que foram para França tentar melhores condições de vida. Duas realidades que se misturam na película, como se só de uma se tratasse.

“Dava para fazer o mesmo em relação ao interior do país, mostrar as duas realidades distintas no tempo”, antes e depois, “mas que continuam tão iguais”. “Estão abandonadas. Basta olhar para Adsamo, na serra do Caramulo”, apontou.

José Vieira estreou em 2012 o filme O Pão que o Diabo Amassou, filmado nessa aldeia do concelho de Vouzela, distrito de Viseu, um projeto que continua a desenvolver e onde continua a filmar.

Na altura, “existiam umas 60 ou 70 pessoas” e, agora, “devem ser menos de 50 e, tirando um casal jovem, os mais novos já têm mais de 50 anos”.

O documentário cruza gerações, recupera memórias de uma população envelhecida, lembra os que partiram para trabalhar no Alentejo dos latifúndios e na poluição da antiga cintura industrial de Lisboa, encontra sobreviventes da Guerra Colonial, e consegue um retrato do país e da sua história, numa aldeia no topo da serra, para onde apenas os seus habitantes se dirigem.

Alguns desses habitantes de Adsamo, que participaram em O Pão que o Diabo Amassou, marcam presença no sábado, no Teatro Viriato, em Viseu, onde, após a passagem da longa-metragem haverá um debate sobre Portugal, a migração, o interior e o cinema, com a presença de José Vieira e de outros convidados.

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