Portugal-Brasil: no sofá da avozinha, por Carlos Fino

Por Carlos Fino

Lisboa, a nova Miami dos brasileiros.

Por uma qualquer lei oculta nunca estudada, Portugal e Brasil têm estado, ao longo da sua história, frequentemente em contraciclo – ora político, ora económico.

Quando num lado há ditadura, no outro há democracia; quando por cá a economia definha, por lá se recupera… e vice-versa.

Nem sempre as duas vertentes – a política e a económica – coincidem, mas o desencontro de uma ou de outra em relação ao outro lado do Atlântico tem sido uma constante.

Este sambinha desafinado revelou-se de grande utilidade para ambos os países.

Primeiro, de meados do século XIX até quase meados do século XX, Portugal exportou para o Brasil mais de um milhão e meio de pessoas, fugidas às apertadas carências lusas.

Com grandes vantagens para ambos os lados.

Portugal beneficiava-se duplamente: a pressão social diminuía e os emigrantes ainda remetiam largas somas de poupanças que ajudavam o velho reino a equilibrar as contas públicas.

Por seu turno, o Brasil obtinha mão-de-obra barata e esforçada, e houve até um tempo em que se saudava o “reequilíbrio racial”.

Tanta gente de fora disputando empregos gerou ondas de desconfiança e conflitos e os brasileiros vingaram-se com a piada de português, que dura até hoje, resistindo ao politicamente correto e até a um começo de punição nos tribunais por xenofobia.

Mas essa foi só a coluna negativa de uma contabilidade largamente positiva para ambos os lados. Afinal de contas, não há bela sem senão…

Quem sempre se beneficiou dos desequilíbrios atlânticos foram os políticos dos dois países – quando a repressão apertava de um lado, corriam a procurar refúgio no noutro.

Logo a seguir à proclamação da república no Brasil, um navio da armada portuguesa fundeado no Rio de Janeiro deu abrigo a centenas de marinheiros brasileiros revoltosos – um caso célebre que levaria o irascível Floriano Peixoto a decretar o corte de relações com Portugal, só restabelecidas um ano depois. Foi feia a zanga, pá!

Mais tarde, em 1959, o general Humberto Delgado, líder da oposição democrática portuguesa, com receio de ser preso pela PIDE, bateu à porta da representação do Brasil em Lisboa, onde o embaixador Álvaro Lins de imediato lhe concedeu asilo.

Salazar não gostou nada e opunha-se terminantemente à transferência do militar para o aeroporto, a fim de embarcar para o país irmão.

Mas teve de repensar a sua atitude quando o diplomata brasileiro confrontou o ministro dos negócios estrangeiros português, Marcelo Mathias, com um caso ocorrido nos anos 30 no Brasil: nessa altura, a embaixada de Portugal havia concedido asilo a dois integralistas brasileiros… A conclusão era óbvia – se funcionava de lá para cá, tinha que funcionar de cá para lá… Era a lei do sambinha desafinado, que o ditador desconhecia.

Mais tarde, aliás, o próprio Salazar acabaria por acolher em Lisboa o ex-presidente Juscelino Kubitschek… As voltas que a vida dá…

NO SOFÁ DA AVOZINHA

Vem tudo isto a propósito daquilo que parece ser, a avaliar pelas notícias dos jornais, uma nova onda de emigração brasileira para Portugal.

Não mais de população carente, como nos anos 90, mas agora de classe média alta – gente bem colocada e com dinheiro.

Uns, arriscando uma nova inserção profissional, garantindo mais segurança aos filhos (que, oh maravilha, podem até andar sozinhos nos transportes públicos!); outros, apenas aproveitando as boas condições do mercado imobiliário (mas obtendo de passada um passaporte lusitano válido para toda a Europa e para os EUA!). E ambos aproveitando, além disso, o clima temperado, a intensa atividade cultural e a já consagrada gastronomia…

Entre os nomes sonantes desta segunda opção estão, por exemplo, o juiz do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o casal Camargo Corrêa, com investimentos em Portugal.

Com a ponte aérea da TAP a funcionar em pleno, garantindo voos diretos para uma dezena de capitais brasileiras, altos executivos dão-se até ao luxo de alternar trabalho e residência de um e outro lado do Atlântico.

Tudo gente que aparentemente se cansou não só das dificuldades brasileiras, mas também de Miami, preferindo cada vez mais apostar em Lisboa, onde o preço por metro quadrado ainda é bastante mais convidativo do que nas capitais europeias.

Com as vantagens suplementares da língua comum e ainda a possibilidade de redescoberta de algumas raízes portuguesas que o Brasil parecia ter apagado da sua memória.

“Morar em Lisboa – disse um desses brasileiros da nova vaga – é como deitar no sofá da avó. É uma sensação de pertencimento, além de os portugueses terem uma cortesia à moda antiga, que se perdeu no Brasil.”

Com declarações destas, quem fica em apuros sou eu, que ando há anos a tentar escrever uma tese sobre as raízes do estranhamento entre Portugal e Brasil.

Lembra-me o caso de Bocage, o conhecido poeta satírico de Setúbal, que deambulava pelas ruas com uma peça de pano às costas e a quem lhe perguntava o porquê daquele propósito, respondia que estava à espera da última moda…

Com tanta evolução no relacionamento bilateral, meu movente objeto de estudo, ao som do sambinha desafinado do contraciclo, arrisco-me a nunca mais mandar cortar o pano…

A não ser que declarações do universo familiar como aquela acima, confirmem, afinal, a minha suspeita de que o brasileiro muitas vezes recalca – até sem disso se dar conta – o que de português ainda lhe vai na na alma. Mas nunca é tarde para tirar uma soneca no sofá da avozinha…

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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