Papa e Patriarca abrem caminho à reconciliação

Por Carlos Fino

“Infelizmente, a Cristandade é como um diamante que se quebrou e não pode mais ser reconstituído. Seria preciso um milagre…” – disse-nos um dia, em Moscovo, alto responsável da Igreja Ortodoxa.

Estávamos nos anos 80, com Gorbachev no poder, e  quando este foi recebido no Vaticano por João Paulo II, especulou-se muito sobre a possibilidade de uma visita do Papa à Rússia. Cautelosa e conservadora, a Igreja Ortodoxa sempre encarou com desconfiança essa aproximação e a visita acabou por nunca se realizar.

Mas, embora com altos e baixos, os contatos então iniciados mantiveram-se e agora, na onda renovadora iniciada  por Francisco, foi finalmente possível concretizar um encontro entre os chefes religiosos de duas das mais importantes igrejas cristãs – catolicismo e ortodoxia.

Reunidos durante duas horas à porta fechada, numa sala do aeroporto de Havana –  cruzamento das suas respectivas viagens à América Latina –  o Papa Francisco e o Patriarca Kirill passaram em revista alguns dos temas de atualidade que  mais os preocupam – designadamente a perseguição de que são alvo os cristãos em países do Médio Oriente e Norte de África.

No final, assinaram um documento conjunto em que reiteram pontos de doutrina em que coincidem – incluindo o conceito tradicional de família e a defesa das raízes cristãs da Europa embora em diálogo com outras crenças  – e  no qual apelam também aos cristãos para que supliquem a Deus que impeça uma nova guerra mundial.

Separados desde o Grande Cisma do Oriente, em 1054,  quando os líderes das Igrejas Católica Apostólica, em Roma, e Católica Apostólica de Constantinopla, se excomungaram mutuamente, estes dois ramos do cristianismo viveram épocas de grande tensão, em particular nos séculos XVI e XVII, com acirrada disputa de influência, designadamente na Ucrânia, onde vivas tensões até hoje permanecem entre ortodoxos e uniatas, a Igreja Católica de Rito Oriental.

É neste contexto que deve ser lida a referência – expressa com ênfase no documento final – sobre a inadmissibilidade do proselitismo, ou seja, as tentativas de uma corrente se expandir à custa da outra.

O encontro terá assim servido, antes de mais, para estabelecer uma plataforma de respeito mútuo – condição sine qua non de qualquer movimento de aproximação.

A separação milenar cavou um fosso difícil de ultrapassar, que não é só teológico, é também cultural – desde a vinculação latina do Vaticano ao culto das raízes gregas por parte da Ortodoxia – para já não falarmos de Moscovo ter chegado a alimentar o sonho de se transformar um dia na terceira Roma.

Neste sentido, o encontro constituiu o reconhecimento, pelo Vaticano, da predominância da Igreja Ortodoxa russa no contexto geral da ortodoxia, onde a ausência de um líder máximo – uma vez que todos os patriarcas têm igual estatuto – tem sido um obstáculo à conjugação de esforços.

Ao dividir a cena com Kirill, Francisco eleva o estatuto moral do Patriarca, sobre o qual projeta a aura de simpatia e respeito que o envolve. Em contrapartida, o Papa – mesmo sem viajar até Moscovo – consolida a leste toda a relevância da Igreja de Roma. Longe vão os tempos em que Estáline se permitia duvidar do poder do Vaticano.

Para Cuba, estado laico de maioria católica onde existe uma pequena comunidade ortodoxa, a projeção de uma imagem de território neutral rendeu certamente pontos em termos de relações públicas internacionais.

E Pútin também não esteve ausente. Kirill – numa tradição de ligação da Igreja Ortodoxa com o poder que vem já do tempo dos czares – tem sido um dos seus grandes apoiantes internos; e agora, quando a diplomacia americana e parte da europeia ainda tentam isolar o líder do Kremlin por causa da Ucrânia, o patriarca ortodoxo assume-se claramente como um canal pelo qual Pútin mostra que tem outras vias de tentar contornar o isolamento a que é votado.

Não houve propriamente milagre e o diamante não foi reconstituído. Mas ao fim de quase mil anos, o gelo quebrou e encetou-se um caminho de reconciliação que, a ser prosseguido, pode sarar algumas feridas e ampliar o poder de influência de dois dos mais importantes ramos do cristianismo. O que em época de profunda crise e falta de fé não é pouca coisa.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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