Obama em Havana para o segundo funeral da Guerra Fria, por Carlos Fino

 

Por Carlos Fino

Em termos geoestratégicos, a visita de Obama a Cuba iniciada este domingo – a primeira de um presidente americano à ilha em quase um século – não tem certamente a importância de outras visitas históricas, como a de Nixon à China, em 1972, ou a de Reagan à Alemanha, em 1987, quando pediu a Gorbachev que pusesse termo à divisão do país.

Mas, em termos simbólicos, dado o impacto mundial do confronto dos EUA com o regime de Fidel, que atingiu o paroxismo em 1962, quando da chamada crise dos mísseis, em que o planeta esteve à beira de uma guerra nuclear, a deslocação de Obama a Havana pode ser comparada, ressalvadas as devidas proporções, à queda do muro de Berlim, um segundo funeral da Guerra Fria.

Desta vez, não é um muro físico que é derrubado – o muro de Leste erguido pelos russos, mas um impiedoso cerco económico e diplomático – o muro do Ocidente erguido pelos americanos em torno de Cuba para asfixiar o regime castrista.

No âmbito do confronto ideológico que atravessou a Guerra Fria, o embargo suscitou paixões no mundo inteiro e ainda hoje tem, de um lado e do outro, quem se oponha ao seu termo.

Uns lembram que Cuba continua a ser uma ditadura brutal, não merecendo por isso sair do isolamento; outros suspeitam que o levantamento das restrições seja uma forma insidiosa de infiltrar o regime, uma espécie de cavalo de Tróia introduzido na ilha.

Mas a verdade é que os tempos mudaram e as razões que, do ponto de vista de Washington, justificavam o cerco a Cuba, não existem mais – a URSS acabou e, com ela, a possibilidade de Cuba se transformar seja numa base de lançamento de mísseis dirigidos contra a América, seja num foco de agitação comunista em toda a região, também desapareceram.

Do lado cubano, existe igualmente a noção – ainda que não inteiramente admitida – de que o sistema comunista que o regime tentou implantar pura e simplesmente não funciona. Havana conseguiu, é certo, algumas realizações sociais importantes em termos de educação e saúde públicas, reconhecidas, aliás, pelas Nações Unidas; mas, em termos de produtividade e consumo, a experiência – como em muitos outros países onde foi tentada – constituiu um fracasso, mesmo descontando o efeito negativo do embargo.

O país praticamente parou no tempo e o anseio de abertura é generalizado. As pessoas, em particular os jovens, querem outro ambiente, em que possam ter iniciativa, acesso às novas tecnologias e liberdade de se expressar e viajar.

Não funcionou o embargo – o regime de Fidel manteve-se e até fez dele habilmente uma justificativa a seu favor; não funcionou o tipo de regime económico implantado, a utopia de superar o mercado.

Esmorecido quase até à extinção o fogo do confronto ideológico próprio da Guerra Fria, restava aos dois lados reconhecer o óbvio e encetar um processo de aproximação realista, que interessa a ambos: aos americanos para fazer negócios numa terra em que falta quase tudo; aos cubanos para obterem meios de sustentação que antes obtinham junto da URSS ou da Venezuela e que a extinção de uma e a crise da outra lhes subtraíram dramaticamente.

AINDA É SÓ O INÍCIO

O processo de aproximação não será fácil, como agora se viu, com o regime a fazer dezenas de detenções preventivas de dissidentes, e não se coibindo de prender integrantes do movimento Damas de Branco (mulheres de presos políticos) no próprio dia da chegada de Obama, incluindo algumas das pessoas convidadas para um encontro com o presidente americano.

Mas nem a oposição dos críticos – incluindo o poderoso lóbi cubano de Miami – nem os incidentes parecem suficientes para impedir o início de um processo que corresponde ao interesse das partes e é ditado pelo próprio bom senso.

Obama não viajou sozinho – levou com ele, além da família, dezenas de empresários e congressistas ansiosos por fazer negócios com Cuba e para isso concederá, nas suas intervenções, que embora espere mudanças, caberá ao povo cubano lutar por elas. E aos políticos americanos em Washington aproveitar o impulso para pôr termo a um embargo que nada já justifica. Mas só o Congresso o pode fazer e muito pode ainda depender de quem for o próximo presidente.

Obama sabe bem que o futuro inquilino da Casa Branca ainda poderá desfazer a abertura  que ele inicia. Por isso, quanto mais êxito tiver na sua viagem, mais forte o seu legado e mais difícil destruí-lo.

Assim, para não azedar o ambiente, não se falará desse insulto ao direito internacional que é a prisão de Guantánamo, sendo no entanto ponto assente que Cuba não desiste de pôr termo à base e de ver o território devolvido à soberania nacional.

Também não haverá encontro com Fidel Castro – o grande símbolo do desafio ao domínio americano na América Latina, que, agora com 89 anos, viveu o suficiente para assistir a uma mudança ainda há pouco considerada remota, se não impossível. Em contrapartida, Obama avista-se com o cardeal Jaime Ortega, que, a pedido do Papa, em 2014, intermediou, em encontros secretos com a Casa Branca, o processo de aproximação que agora teve o seu ponto mais alto.

Que pensará, sobre tudo isto, nos bastidores, o velho combatente da Sierra Maestra? E que futuro imaginará el comandante para o seu país, agora que os americanos estão de volta?

Brasília, 20 de Março de 2016

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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