Europa – a tentação nacionalista, por Carlos Fino

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Por Carlos Fino

Potenciada pela vitória de Trump nos Estados Unidos, a onda nacionalista em gestação na Europa há alguns anos tende agora a avolumar-se, ameaçando implodir a arquitetura institucional que foi sendo laboriosamente construída desde o fim da última Grande Guerra.

Depois do Brexit, já não são apenas alguns países mais ou menos periféricos do centro e leste europeu – são os próprios estados centrais que integram o núcleo duro da União Europeia como a Itália e a França que podem, a breve trecho, sucumbir à tentação nacionalista.

O chamado projeto europeu – a progressiva construção de uma unidade económica e política cada vez mais forte – está claramente em risco.

Como se chegou até aqui?

O diagnóstico varia consoante a perspectiva, mas alguns aspectos são  consensuais. É hoje adquirido, por exemplo, que o lançamento do Euro, a moeda única europeia, sem ter sido acompanhado por outras medidas estruturantes como a progressiva harmonização fiscal e a partilha dos riscos financeiros, com um centro económico e monetário pronto a acudir, em tempos de crise, aos elos mais fracos da cadeia, acabou por gerar enormes tensões e desequilíbrios, praticamente dividindo a UE em dois blocos distintos –  ricos do Norte versus pobres do Sul.

Depois, já a partir de 2008, a inflexível política de austeridade imposta pela Alemanha como resposta à crise financeira mundial desencadeada nos Estados Unidos com a falência do Lehman Brothers, agravou tudo.

Nos últimos anos, a solidariedade, que sempre foi um elemento decisivo da construção europeia, praticamente desapareceu das políticas comunitárias e até do discurso político, criando a sensação de que cada um está  entregue a si próprio: em nome da união, é-se compelido a adoptar medidas drásticas e socialmente gravosas, que beneficiam sobretudo a Alemanha, mas, nos momentos de maior aperto, pouco ou nada se pode contar com apoios centralizados.

Tudo isso gerido por um aparelho burocrático de altos funcionários regaladamente instalados em Bruxelas e Estrasburgo, com decisões muitas vezes tomadas por organismos não eleitos- – alguns deles, como o Eurogrupo, sem terem sequer fundamento legal nos Tratados – implacáveis na aplicação de medidas de ortodoxia monetária e financeira e completamente alheios às dificuldades diárias da grande massa da população.

Como se espantar, nessas circunstâncias, que o eleitorado volte costas e passe a dar ouvidos aos críticos e a procurar alternativas?

Mas há mais – a onda de refugiados e a forma despreparada e desordenada como a UE a enfrentou, embora fosse perfeitamente previsível, veio expor uma outra fragilidade estrutural: a ausência de uma verdadeira política externa e de segurança europeia independente.

É certo que alguns países europeus como a França e a Alemanha se distanciaram da aventura iraquiana de George W. Bush. Porém, logo a seguir, houve um realinhamento acrítico com os EUA e os europeus acabaram por participar do esforço de guerra no Afeganistão, tiveram responsabilidade direta na desestabilização da Líbia e da Ucrânia, para depois se queixarem da reação da Rússia e  deixarem deteriorar as relações com Moscovo. Tudo mais ao sabor  das conveniências do momento deste ou daquele país do que em função de uma política estruturada com base numa estratégia comum definida por todos.

Metaformofose

Numa palavra – a deriva neoliberal na economia e o seguidismo acrítico da América em política externa, tudo gerido por uma camada de funcionários e políticos  privilegiados e distantes do comum dos cidadãos, criaram da UE uma imagem negativa, abrindo espaço para o avanço das correntes nacionalistas e xenófobas a que estamos agora a assistir.

É como se a UE tivesse sofrido uma metamorfose, transformando-se por força das circunstâncias, da pressão externa e das debilidades próprias, de fonte de esperança e projeto de progresso em benefício de todos os povos do continente, numa máquina impessoal cada vez mais ao serviço dos interesses supranacionais dos grandes potentados económicos e financeiros sem rosto que são hoje os grandes beneficiários da globalização.

Quem, até agora, melhor soube captar o imenso descontentamento gerado por essas políticas foram os partidos de extrema-direita, que através de uma linguagem popular e anti-sistema, contra o politicamente correcto das instituições, vêm reforçando a sua representatividade e participam de ou chefiam já diversos governos europeus. É uma corrente em ascensão que pode alastrar ainda mais na sequência das próximas eleições na Áustria, Holanda, França, Itália, Alemanha…

Confrontada com esta situação, a UE tem levado tempo a reagir – as instituições e os líderes mais tradicionais parecem perplexos, incapazes de operar as mudanças que se impõem. Hesitam entre deixar tudo como está, a ver se passa, ou avançar com novas medidas de reforço da união, designadamente em termos bancários, fiscais e defesa… Um passo muito arriscado no actual contexto e para o qual não só não parece haver condições políticas como poderia até acentuar as contradições e o descontentamento.

Composta de velhas nações com uma pesada tradição de guerras fratricidas, a Europa sofre deste paradoxo – só o será enquanto o não for. Qualquer passo de reforço da união e do centralismo – como foi o euro, por exemplo – arrisca-se a desencadear uma onda de fragmentação difícil de conter.

O nacionalismo não será a melhor resposta aos problemas com que a UE se confronta. Mas face aos bloqueios a que se chegou, é a resposta que os eleitorados encontram e tendem a sancionar para poder corrigir uma situação cada vez mais insustentável. Por isso, alguma devolução de competências aos Estados nacionais parece agora inevitável, sob pena de todo o edifício ruir.

Tão importante ou mais do que isso, seria necessário também rever, num sentido mais cooperativo e solidário, as políticas económicas e financeiras, a par  de uma remodelação da política externa e de segurança comum, que, sem pôr em causa a aliança estratégica com os EUA, destes recusasse o desnecessário belicismo, defendendo melhor os interesses próprios, o que implica necessariamente um relacionamento menos hostil para com a Rússia.

Será a UE capaz de o fazer a tempo por forma a, já não digo evitar, mas pelo menos conter a onda nacionalista que ameaça transformar-se em tsunami e tudo arrastar à sua frente?

O desafio que o espírito do tempo lhe lança e o vento sopra é este – reforma-te, Europa, reforma-te, ou morre!

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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