Pretendiam um Américo Tomás

E é uma objetiva realidade: a nossa direita neoliberal, hoje no poder, pretende que o Presidente Cavaco Silva, nas atuais circunstâncias políticas, se comporte como um novo Américo Tomás: o Governo vai governando, agora ao sabor dos grandes interesses, internos e internacionais, devendo o Presidente Cavaco Silva funcionar como uma espécie de canal sem ruído.
Os partidos hoje no poder não pensavam deste modo nos Governos de José Sócrates, onde, sem um ínfimo de moral para lá do esbracejar verbalizante, acabaram por deixar de lado um problema que invocavam, mas que nunca fora verdadeiramente o seu: o problema da atitude assente em valores, na sequência do aberrante (dito) casamento homossexual.
Como todos recordamos bem, tudo começou pela suposta descoberta – patetice…– de que, afinal, Aníbal Cavaco Silva, perante a realidade do aberrante diploma que lhe chegara, se comportara como uma espécie de Pilatos: não concordava, mas como de nada valia lutar contra, promulgara. Simplesmente, os que o criticaram só tinham razão em termos absolutos, porque chamados à materialização de uma reação concorrencial adequada, disseram nada. Precisamente o que eu, por tantas vezes, asseverei. Uma direita podre, já sem moral, apenas norteada por interesses. Uma realidade que até mesmo Salazar conheceu bem.
Esta direita podre neoliberal, já sem um ínfimo de valores, incluindo o pátrio, desde há muito – logo desde o início da III República – que sonhou com a destruição da Constituição de 1976. De resto, só aceitou a Revolução de 25 de Abril porque a mesma foi imposta pelo Movimento das Forças Armadas. Pretendia, isso sim e desde há muito, uma democracia, mas de molde a que pudesse operar-se uma abertura liberalizante do País, dando assim primazia aos interesses dos detentores de riqueza, mesmo que secundarizasse o próprio País, a sua História e a generalidade dos portugueses.
Foram precisos trinta e sete anos e terríveis erros políticos dos portugueses para que tal sonho se tivesse tornado uma realidade. Os que hoje protestam contra as recentes declarações do Presidente Cavaco Silva são os mesmos que aplaudiram o que de muito pior disse na sua infeliz e inoportuna intervenção no seu discurso da tomada de posse mais recente. Ali, na Assembleia da República, explodiram num verdadeiro trovejar de aplausos, mas já hoje criticam Aníbal Cavaco Silva por este criticar agora o muito mais grave do que foi então criticado.
E nesta fase de toda esta polémica não me é possível deixar de referir aqui o recente comentário de Vasco Pulido Valente. E faço-o por esta razão simples: quem tiver bom senso, simplesmente de há muito não ligará ao que escreve este nosso concidadão. São muitas as razões para assim proceder, mas talvez a mais relevante seja a que se materializou nos seus inenarráveis comentários às obras de Miguel Sousa Tavares. Quando se critica como ao tempo se viu, obtém-se, até sem ter de pagar, um atestado de perda cabal da imagem e do poder crítico de quem gosta de comentar o que vai pela sociedade portuguesa e pelo Mundo.
Diz Vasco Pulido Valente agora que a eleição de Aníbal Cavaco Silva foi uma das maiores desgraças que sucederam a Portugal e aos portugueses desde 2006. Bom, eu posso dizer isso, mas por razões diferentes. Agora, a direita portuguesa neoliberal, mesmo que tenha criticado essa vitória eleitoral, não tem direito a fazer essa crítica. E não o tem, precisamente, pelo que o Presidente Cavaco Silva invocou nas suas corretas apreciações sobre o momento que passa.
Desde logo, porque em Economia, como todos sabemos hoje bem, há sempre mil e um caminhos. Depois, porque os governantes de hoje não são infalíveis, para lá de se situarem a anos-luz de dar cumprimento a muitíssimo do que prometeram. Ainda, porque estão claramente a destruir a Constituição de 1976 e a promover a completa descaraterização do espírito libertador da Revolução de 25 de Abril. E, por fim, porque a solução apontada para a estrutura orçamental do ano que vem é claramente nada equitativa.
Admitamos, por mera hipótese, que o nosso funcionalismo público ficava, no início de 2012, reduzido a dez mil funcionários. Bom, à luz da baralhada argumentativa apresentada pela nossa direita neoliberal que hoje governa, seria a essa minoria de dez mil funcionários públicos que se teria de ir buscar o que se impunha pagar aos credores!!
Ora, há aqui um grande erro de quem hoje governa o País, porque as melhores condições de quem trabalha na Função Pública só atingem os quadros mais baixos e alguns dos intermédios, mas nunca os quadros dirigentes, ao menos, desde chefe de divisão. Mesmo técnicos com elevada especialização ganham muito mais no setor privado que no público. Basta reparar, por exemplo, no que tem lugar com os médicos, que têm vindo a sair do público para o privado. Ou nos professore e mestres de Direito, que sempre trabalham em escritórios exteriores às faculdades, onde ganham incomensuravelmente mais que nas faculdades. Ou nos pilotos de combate da Força Aérea, que rapidamente procuram transferir-se para as grandes companhias de aviação. Ou nos técnicos superiores do LNEC, ou nos professores de Engenharia Civil, que vencem muitíssimo mais no privado que na universidade.
Apenas a título de exemplo: quanto vence, ou vencia, Miguel Beleza como catedrático da Universidade Nova de Lisboa? E como consultor do BCP? Quantas horas de aulas teria de dar para se aproximar dos proventos recebidos no BCP? E Vítor Constâncio, nos casos do ISEG, como catedrático convidado, e de Governador do Banco de Portugal? Enfim, poderia seguir por este caminho, porque levaria uns meses até terminar.
Qual é, então, a razão desta reação, aparentemente maciça, de (ditos) cavaquistas – vão para onde convém, claro…– contra a lógica, corajosa e inesperada – para muitos – tomada de posição do Presidente Cavaco Silva? Muito simples: é que todos eles trabalham no setor privado, no mínimo. E sempre ao mais alto nível, pelo que ficar sem os décimos terceiro e quarto mês poderia significar, nalguns casos, uma perda de cerca de oitenta mil euros em cada um de dois anos. Ou mais, porque já poucos acreditam no que diz o Governo. Além do mais, previsão de economista, pela natureza do seu trabalho, é previsão errada, e, neste caso, por razoável defeito.
Eu também acho que a eleição de Aníbal Cavaco Silva foi o mais grave erro estratégico dos eleitores portugueses, mas porque a mesma originou o que ele próprio procurou agora emendar, chamando a atenção do Governo para a realidade da injustiça da solução por este apresentada para o Orçamento de Estado de 2012.
Infelizmente para o Presidente Cavaco Silva, a titubeância política do PS, a posição inacreditável do PCP e do Bloco de Esquerda, que já nos habituaram ao seu jogo tático com a direita, que até ajudaram a colocar no poder, com as consequências que hoje se podem já ver e cujo resultado final todos pressentem, e o quase silêncio da Igreja Católica, para mais num domínio como o da equidade – parto aqui de um princípio que pode não corresponder à realidade, e que é o de que os nossos bispos percebem alguma coisa de Economia e Finanças –, fizeram com que, na aparência, o Presidente Cavaco Silva pareça ter ficado isolado.
Do contacto que mantenho com gente amiga ou conhecida, posso assegurar que tal não corresponde à realidade. O que leva muitos a crer nessa vaga contra a tomada de posição do Presidente da República é a lamentável e distorcida informação televisiva que está hoje presente em Portugal. Uma realidade ainda há dias focada em Moçambique por Almeida Santos.
Tenho uma imensidão de razões para criticar a ação política do Presidente Cavaco Silva, mas não por estas suas certeiras palavras recentes sobre a injustiça da solução aplicada no próximo Orçamento de Estado. O problema, que até acabou por ser potenciado pela eleição de uma personalidade conservadora, foi que tal realidade deu fôlego à política de degradação constitucional que, na prática, está hoje a ter lugar em Portugal.
Quem puder ser intelectualmente honesto nos dias que passam, facilmente perceberá que nós já não temos em vigor uma real democracia, mas sim um sistema político onde os nossos (ditos) representantes são escolhidos por sufrágio universal, embora as suas promessas representem simplesmente nada. No fundo, é como eu costumo dizer: eles a falar é como o Sol a corar. E por isso compreendo muitíssimo bem a reação de ontem de uma boa imensidão de militares portugueses, porque tal como Otelo Saraiva de Carvalho disse há um tempo atrás, se soubesse que as coisas chegariam a este ponto, não teria feito o 25 de Abril, ou preferiria deixar o Exército. E quem diz Otelo, diz Ornila Machel, ao referir há dias que se o seu pai ressuscitasse, morreria no dia seguinte.
A direita neoliberal de hoje está a realizar o seu sonho dos primeiros dias, quando Francisco Sá Carneiro, manobrando Adelino da Palma Carlos, pretendeu levar a Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas a aceitar a eleição de António de Spínola como Presidente da República, ele que era, como depois se viu, uma personalidade politicamente limitadíssima. E hoje sim, é que são verdadeiras as palavras de um dos comunicados do Movimento das Forças Armadas, logo na madrugada de Abril: um povo a quem só se exigem deveres, sem a correspondente contrapartida em direitos. Triste sina a nossa.

Hélio Bernardo Lopes
De Portugal

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