Portugal: A Extradição de Nacionais

Como se sabe, não sou jurista, mas sei ler, pensar, comparar e tomar decisões. Porventura, decisões incorretas, menos corretas ou mesmo
corretas. De molde que me determinei a procurar esclarecer-me sobre o tão recentemente falado caso da extradição de portugueses pelas nossas autoridades competentes para decidirem sobre tais casos, que surgiram agora de vários lados.
Com a finalidade de chegar à conclusão que adoto agora como a que me parece mais correta, vou aqui expor dois exemplos reais, um já com cerca de trinta e seis anos e outro muito recente, e um terceiro, estruturalmente hipotético.
O primeiro caso refere-se à Lei 8/75, de 25 de Julho, e que se tornou conhecida por Lei da PIDE. Aquele diploma constitui uma lei penal retroativa e está presente na Constituição da República, aprovada em 02 de Abril de 1976, no seu Artigo 292º.
Acontece que a Constituição de 1976, pelo seu Artigo 29º, e entre outros aspectos, proíbe que possam ser aplicadas aos cidadãos leis penais retroativas. Ou seja, pelo Artigo 29º a Constituição da República proíbe a aplicação de leis penais retroativas, mas com o Artigo 292º admite a aplicação da Lei 8/75, que é, precisamente, uma lei penal retroativa. E note-se este fato importante: a entrada em vigor do nosso diploma fundamental foi posterior à entrada em vigor da tal Lei da PIDE.
Ao tempo, era juiz auditor de um dos Tribunais Militares Territoriais de Lisboa um juiz de nome, Barata, que acabou por ficar conhecido, precisamente, por juiz Barata. E este juiz, logo no primeiro julgamento de um dos agentes da Direção-Geral de Segurança, determinou que a Lei 8/75 era, à luz do Artigo 29º da Constituição da República, inconstitucional, o que era absolutamente verdadeiro.
Bom, o problema subiu à Comissão Constitucional, presidida por Melo Antunes, que deliberou o seguinte: sim, à luz do Artigo 29º a tal lei é inconstitucional, mas tendo em conta que a mesma é abrangida pelo Artigo 292º da Constituição, também é constitucional. Nestas circunstâncias, a Comissão Constitucional decidiu, à laia de desempate decisório, que a referida lei devia ser aplicada. Era inconstitucional, mas estava na Constituição. Era, assim, constitucional.
O segundo caso diz respeito ao caso do corte de meio décimo terceiro mês aos funcionários públicos. Bom, o Tribunal Constitucional considerou tal prática contrária ao texto da Constituição da República, mas que deve ser aceite e aplicada em face da situação econômica e financeira do País, embora só para o ano de 2011.
Simplesmente, já aí está, e, ao que tudo faz crer, para toda a vida, o corte do décimo terceiro mês e do subsídio de férias. De molde que o Governo, a fim de contornar questões de inconstitucionalidade, lá irá tentar inventar a tal historieta da diluição pelos doze meses…
O terceiro caso é, como referi, hipotético. Imagine-se que o Juiz-Conselheiro Guilherme da Fonseca publicava na revista, JULGAR, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), um texto onde mostrava que, nos termos da Constituição da República, Portugal não podia fazer parte de instituições militares internacionais.
Dada a natureza do tema, os nossos constitucionalistas mais afamados – Canotilho, Vital Moreira, Bacelar Gouveia, Freitas do Amaral, Bacelar de Vasconcelas, Marcelo, etc.. – deitavam-se a analisar o texto de Guilherme da Fonseca, acabando por compreender o que nunca haviam visto: o juiz-conselheiro tinha razão. E, num ápice, a ASJP, em colaboração com a Almedina, dava à estampa uma obra com os correspondentes estudos daqueles nossos constitucionalistas e do juiz, mostrando a nova faceta do nosso ordenamento constitucional, que nunca havia sido pressentida.
Pergunto agora eu: teria Portugal, nesta situação, que abandonar a OTAN? Claro que não! E isto porque a Constituição da República vale até onde puder. É sempre assim.
Mas vamos, então, ao caso da extradição de portugueses feita por autoridades portuguesas. A primeira referência a este tema surge, precisamente, na Constituição da República, por cujo Artigo 33º, Nº 3, se estipula que não é permitida a extradição de cidadãos portugueses, exceto nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada.
Mais tarde, Portugal e Brasil aprovaram um Tratado de Extradição Entre Portugal e Brasil, através da Resolução da Assembleia da República Nº 5/1994, de 03 de Fevereiro, onde pelo Artigo 3º – Nº 1 – a) se considera inadmissível a extradição no caso de se estar perante pessoa reclamada nacional da Parte requerida. Ou seja, corrobora-se o texto constitucional.
Ora, através da Resolução da Assembleia da República Nº 49/2008, de 18 de Julho, entrou em vigor a Convenção de Extradição Entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, por cujo Artigo 1º os Estados Contratantes se obrigam a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção…
No Artigo 3º o tema volta a ser tratado, mas nunca é incluída a situação prevista no Artigo 33º da Constituição da República. E, logo no Artigo 4º, que trata da Recusa Facultativa de Extradição, na sua alínea a) se diz que uma das condições em que a recusa da Parte requerida pode ter lugar é ser um nacional dessa Parte. Outro seria o significado se no texto estivesse: …uma das condições em que a recusa da Parte
requerida tem lugar é ser…
Ora, foi isto que disse a Ministra da Justiça: o Artigo 1º trata o tema à luz da Convenção, e permite a extradição já sem a limitação que se contém na Constituição e no Tratado anterior, mas logo o Artigo 4º estabelece a possibilidade de se recusar em certas condições, mas que são facultativas para a Parte requerida, e já não com o caráter imperativo do texto constitucional: pode ser operada a extradição ou não o ser.
Mais tarde, em 12 de Outubro de 2009, foi operada a 5ª Atualização da Lei da Cooperação Judiciária em Matéria Penal, por via da Lei Nº 115/2009. Ora, o Artigo 1º, a) diz que este diploma se aplica, entre outros, ao caso da extradição. Depois, no Artigo 3º é dito que as formas de cooperação a que se refere o Artigo 1º se regem pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado
Português.
Ou seja, tem a mais plena validade para o Estado Português o que se contém na anterior Convenção, relativa aos estados de língua portuguesa.
Logo depois, no Artigo 4º, Nº 1, diz-se que a cooperação internacional em matéria penal… releva do princípio da reciprocidade. E, no Nº 3, a), salienta-se que a falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação, desde que essa cooperação se mostre aconselhável em função da natureza do fato… E, na alínea c), que sirva para esclarecer fatos imputáveis a um cidadão português.
Por fim, o Artigo 40º, Nº 1, garante que a pessoa, nacional do Estado requerido, detida para extradição, pode declarar que consente na sua entrega ao Estado requerente…
Há em tudo isto aspetos diversos sobre que importa dizer alguma coisa. Por um lado, quando se fala em reciprocidade, tal conceito terá de ter um momento para início da verificação da mesma. Tal momento, como é evidente, constitui-se no primeiro caso que venha a ser colocado, e não, como se torna evidente, olhando toda a História dos Estados em causa.
Em segundo lugar, quando um Estado assina um tratado, ou uma convenção, de um modo livre, a mesma passa a estar em vigor na sua plenitude, porque sempre terá de admitir-se que o legislador sabe o que anda a fazer e porque os Estados não podem assumir responsabilidades que depois venham a não cumprir por supostos falhanços de natureza técnico-jurídica. Se assim fosse, bom, tudo passaria a ser nada, com ou sem convenções ou tratados.
Em terceiro lugar, e se acaso não erro, o domínio da extradição pertence aos Tribunais das Relações, não admitindo recurso. Se esta minha interpretação estiver correta, então há aqui uma inconstitucionalidade, porque se impediria, de um modo absoluto, um recurso sobre uma possível inconstitucionalidade praticada pelo Tribunal da Relação em causa.
Imagine o leitor que o Brasil pedia a extradição de um português residente em Portugal, e que a legislação aplicável fosse, à luz da opinião de muitos, a Constituição da República. Bom, numa tal situação esse português não poderia ser extraditado. E se o Tribunal da Relação que estivesse a tratar o caso aceitasse o pedido de extradição? Não podiam os advogados do referido cidadão recorrer para o Tribunal Constitucional, em face da inconstitucional decisão do Tribunal da Relação? Claro que podiam! E podiam porque o que estava então em causa era um tema de inconstitucionalidade.
Por fim, e em quarto lugar, uma realidade que sempre ouvi a juristas diversos, alguns muito eminentes: os tratados e as convenções, desde que recebidas no ordenamento jurídico nacional, têm valor constitucional, a menos que sejam denegadas.
Mostra isto, pois, que desde a tal convenção dos países de língua portuguesa, Portugal passou a poder extraditar os seus nacionais em condições muito mais gerais que as do terrorismo ou da criminalidade internacional organizada, embora possa também recusar essa extradição, porque a mesma passou a ser uma faculdade do Estado Português. Para lá disso, o cidadão português sobre quem é pedida a extradição tem o
mais pleno direito de aceitar a extradição, desde que assim o entenda. Foi, no fundo, para lá de outras considerações, a posição assumida por António Marinho e Pinto, logo ao início do caso Duarte Lima: se o caso se passasse com o Bastonário, e ele soubesse que estava inocente, iria ao Brasil.
Tinha, pois, razão a Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, mas foi demasiado longe, causando assim um terrível pânico nos nossos jornalistas e comentadores televisivos. É bem verdade que o saber muito, se não for devidamente controlado, pode tornar-se numa fonte de chatices. De resto, Paula Teixeira da Cruz sabe muitíssimo bem que no Direito dois e dois podem ser quatro ou vinte e dois. E mesmo muitos outros resultados.

Por Hélio Bernardo Lopes

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