O Reino do Desnorte

Só por manifesta boa vontade – uma vontade excelente – se pode não reconhecer que a vida do País se transformou, nos dias que passam, num autêntico reino do desnorte. Deixou, quase completamente, de acreditar-se na generalidade das instituições, seja quando estão presentes e se ouvem, seja quando se dá, precisamente, o contrário.

Disse António José Seguro, na carta que escreveu às partes informantes da Tróyka, que estamos à beira da tragédia social. E é uma realidade de que ninguém hoje duvida. Uma tragédia social sem porta minimamente capaz de saída. Uma realidade cuja demonstração se pode mostrar por este exemplo, ontem mesmo por mim colhido diretamente de um amigo.

Com dois filhos doutorados recentemente por universidades estrangeiras de primeira grandeza, tem um a trabalhar no Reino Unido e outro numa instituição nacional de prestígio. Porém, o pai, igualmente académico de uma das nossas escolas de grande prestígio, mostra-se apreensivo quanto ao segundo caso atrás citado. E isto para não falar já da sua filha, ela também a menos de ano e meio de se ver doutorada.

A dúvida angustiante do meu velho amigo é simples: até por aqui há dúvidas para gente com este gabarito, para não referir já o seu caso e o de sua mulher. Haverá de compreender-se, pois, que nos encontramos a descrever uma trajetória estranha e que se nos mostra como constantemente dolorosa e por muitos anos e sem saída. Um labirinto de dificílima saída.

Claro está que este tempo de desnorte teve a sua causa na crise mundial surgida nos Estados Unidos, mas logo hipertrofiada pelas soluções encontradas, por ordem europeia, para se sair dessa crise. No momento que passa, porém, o problema está, acima de tudo, ligado à falta de qualidade reconhecida publicamente nos que dirigem a governação.

Basta olhar, a este propósito, o caso das faturas, sobre que logo reagiu Francisco José Viegas. Um facto que levou Marcelo Rebelo de Sousa a apontar o sonho dos nossos atuais governantes: imaginam poder criar um português novo, digamos assim, mas os portugueses são como são, já com perto de nove séculos. Ou seja e por outras palavras: faltam aos atuais governantes a cultura histórica e o conhecimento do País e das suas gentes, de molde a encontrar soluções credíveis e razoavelmente eficazes.

Mau grado tudo com algum espanto, a verdade é que os nossos governantes atuais parecem desconhecer o que há dias referiu Luís Mira Amaral numa sua entrevista a um diário: falhou a ideia de que os bancos podiam ser deixados à solta. Uma realidade de que o atual Primeiro-Ministro nunca nos forneceu um só eco, assestando as suas baterias partidárias para o seu antecessor, acreditando cegamente no modelo neoliberal, e esquecendo os terríveis efeitos da globalização e dos paraísos fiscais.

No meio de tudo isto, as ponderadas e mui certeiras palavras de ontem do conselheiro, Fernando Pinto Monteiro, no seu agraciamento pelo Presidente da República: manifestou-nos a sua preocupação pelo que parece estar a desenhar-se, e que é uma menor transparência na separação de poderes. E continuou a sua análise com estas palavras bem oportunas: não pode aceitar-se que em nome de imaginários poderes ou duvidosa aproximação, o essencial seja posto em causa. E salientou claramente algo deveras importante: mesmo numa época de grave crise, como a atual, nunca poderá justificar-se a quebra de alguns princípios.

De resto, também ontem Eduardo Ferro Rodrigues se fez eco de alguns riscos que podem vir a correr-se, salientando que Portugal vive um momento muito difícil para definir um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional, pois a crise económica e social pode evoluir para uma crise do regime democrático. E completou estas evidências com esta outra ainda maior: o caminho que se está a seguir está longe de garantir os consensos políticos e sociais básicos. E quem poderá duvidar de uma tal evidência depois dos casos mais recentes passados com Miguel Relvas?

Depois do que agora se viu, eis que de pronto nos chamaram a atenção para o direito de cada um expor o seu pensamento, até por relevar tal da legalidade e da natureza das coisas. Bom, isso é uma realidade, mas só enquanto o for. Porque se tal realidade fosse absoluta, também não teria sido legal operar a Revolução de 05 de Outubro de 1910, nem a de 28 de Maio de 1926, nem a de 25 de Abril de 1974. Nenhuma destas revoluções era permitida quando teve lugar. Nem se poderia ter concedido independências às antigas províncias ultramarinas, porque elas eram Portugal há séculos, ninguém tendo sido auscultado. Enfim…

Mas que pensar da continuação de Miguel Relvas no Governo, se um ex-líder do PSD – Marcelo – nos expôs o seu pensamento sobre o apoio público de Relvas a Fernando Seara, designando-o como uma espécie de beijo da morte? Porque não olha o Primeiro-Ministro para o caso da anterior líder da pasta da Educação da Alemanha?

Além do mais, é essencial recordar o que em tempos se passou em Chaves, com Augusto Santos Silva, então também governante, mas que ali se deslocara em funções de natureza partidária. E o que foi que disseram os dirigentes dos partidos da oposição do tempo? Bom, talvez que era mau, mas que se compreendia… E que dizer da atitude de Pedro Passos Coelho para com o Primeiro-Ministro do tempo, José Sócrates, recusando-se a reunir com o próprio, e fosse a situação a que fosse?…

Simplesmente, o Governo tem o dever de compreender o sentimento dos portugueses, para mais num dia em que muito destes se viram confrontados com mais uma basta fatia de corte nos seus meios de suporte social.

Falta ao atual Governo compreender, e assimilar, as recentes palavras de Dilma Rousseff: com a ação da presidência de Lula e da sua, vinte e dois milhões de brasileiros deixaram de viver a miséria visível em que se encontravam, e tudo isto com a persistência de fortes correntes conservadoras que quase empurram o Mundo para o abismo da crise. Correntes em que se inscreve a ação política do atual Governo Português. Correntes que esqueceram a responsabilidade por detrás do escândalos do BPN, BCP e BPP, apontando o excesso de bifes como a causa do estado a que chegaram Portugal e os portugueses.

Vem aí, já na próxima sexta-feira, um jantar com dezenas de oficiais-generais, na reserva ou na reforma, onde se analisarão as mudanças há dias anunciadas pelo atual Governo. Claro está que, não sendo o prenúncio de nenhuma revolução de 26 de Abril, é, indubitavelmente, o resultado de uma ruptura profunda com os vexames a que Portugal está a ser sujeito, fruto de uma governação objetivamente desumana, insensível, politicamente surda e ineficaz.

Hoje, se quisermos usar de honestidade intelectual, facilmente se constata que o funcionamento da nossa vida política interna está a ser comandado a partir de fora. Mais: esse comando procura favorecer, através das posições assumidas pelos atuais dirigentes europeus, a atual direita que, sem Norte, nos vai desgraçando.

Os portugueses estão fartos deste Governo e desde há muito. É dever do Presidente Cavaco Silva, perante uma tão forte evidência, dar voz aos portugueses. A democracia que temos, mau grado tudo, terá capacidade e condições para fornecer uma alternativa, no Governo e na governação. Fico à espera do que de há muito se impõe fazer.

 

Por Hélio Bernardo Lopes
De Portugal

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