Entre o medo e o enfrentamento das epidemias: uma reflexão motivada pela Covid-19

Por Dilene Raimundo do Nascimento

Ao longo dos séculos, as sociedades tiveram que enfrentar eventos epidêmicos devastadores que impuseram aos homens o medo da morte e da desagregação social, com impacto nas estruturas administrativas e na agudização dos problemas políticos, sociais, culturais e morais. E em função de eventuais noções de contágio, foram planejadas ações diversas, como o isolamento, o cordão sanitário, as desinfecções, as quarentenas.

As epidemias são episódios de existência breve, mas intensa e arrebatadora, e é esse caráter de crise, de ruptura com uma determinada estrutura que possibilita revelar diversos aspectos da vida humana. Uma crise rompe com o equilíbrio, instaura tensões e conflitos, perturba a ordem estabelecida. Uma crise, no caso de uma epidemia, coloca em xeque a capacidade dos serviços de saúde na assistência aos doentes, coloca em xeque a capacidade da ciência biomédica no tratamento dos doentes e no controle da doença, coloca em xeque as crenças religiosas, ao mesmo tempo em que impõe uma reordenação social.

Como fenômeno social, uma epidemia assume uma forma dramática, começa num lugar e num momento determináveis, para, em seguida, iniciar uma trajetória imprevisível, no tempo e no espaço. Outro aspecto dramático é seu caráter de espetáculo, com a possibilidade de morte em massa, mobilizando comunidades, que, por meio de rituais religiosos ou leigos, buscam reafirmar valores sociais e modos de compreensão sobre o que devam ser doença, saúde, morte e vida. É especialmente este caráter público e sua dramaticidade o que nos permite, ao estudarmos historicamente as epidemias, a compreensão das estruturas e valores sociais de uma determinada sociedade.

Peste, cólera, varíola, malária, febre amarela, gripe espanhola, poliomielite, Aids e dengue são algumas das doenças que assumiram formas epidêmicas, e, em alguns casos, disseminaram-se como pandemias, de grande impacto para as populações. Algumas dessas doenças atravessaram os séculos em surtos epidêmicos; já outras emergiram apenas no século 20. Sangrias, ervas, infusões, emplastos, remédios de segredo e ventosas foram, em séculos passados, práticas comuns (hoje ainda encontradas como sobrevivências culturais), de barbeiros, cirurgiões, sangradores, boticários, curandeiros e rezadores.

O século 20 se abriu com a promessa de saúde pela ciência e tecnologia. Esta promessa traduziu-se em novos paradigmas da medicina, na hegemonia do saber médico, em novas instituições de pesquisa em saúde −, tudo isso num contexto social, cultural e político de acelerado processo de transformações. Nesse sentido, para se compreender historicamente uma epidemia, para estudar a sua representação social, há de se fazer um recorte, o mais preciso possível, da patologia vigente; além da configuração histórica e ideológica que a contextualiza, bem como do estágio de desenvolvimento da medicina, posto que nosso entendimento do fenômeno epidêmico depende de uma clara percepção da relação dialética entre a realidade social e histórica e a doença.

A peste, por exemplo, cujas epidemias dizimaram populações inteiras na Europa do século 14, quando o pensamento hegemônico era de base religiosa, com a crença na doença como castigo divino, aparece em todo o seu horrendo esplendor na descrição por Boccaccio:

“Apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o povo de bubões. Em seguida o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras eram pequenas e abundantes. E, do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte, também as manchas passaram a ser mortais”.

E mais adiante, completando o seu quadro macabro: “passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios (…); punham-se nessas Igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios”.

Quando a peste desembarcou no Brasil, no final do século 19, em Santos, e, início do século 20, no Rio de Janeiro, o conhecimento científico sobre a doença já estava consolidado desde a década de 1890, com a identificação do bacilo causador e do papel dos ratos e suas pulgas na cadeia de transmissão do bacilo. Já era possível produzir a tecnologia do soro e da vacina para tratar os doentes. Além disso, havia uma decisão política de saneamento da Cidade do Rio de Janeiro, Capital Federal à época. Dessa forma, essas novas ferramentas, produzidas pela ciência, possibilitaram uma intervenção da saúde pública na evolução da doença no país, permitindo o seu controle, tornando-a, enfim, bem menos devastadora.

Antes mesmo de a peste aqui chegar, tão logo se teve a notificação de sua existência na cidade do Porto (Portugal), a decisão de estabelecer quarentena aos navios vindos de Portugal, como uma medida sanitária, suscitou grande debate no país, sob a justificativa de que essa medida impactaria de forma muito negativa a economia brasileira, ancorada no comércio exterior, quer pela importação de produtos quer pela exportação do café brasileiro. Observa-se que esse debate entre saúde e economia é recorrente em alguns contextos de epidemia.

No bojo do projeto de saneamento da Cidade do Rio de Janeiro, estava incluído o controle ou mesmo a erradicação da febre amarela, cujas epidemias eram regulares, desde o século 19. O médico e pesquisador cubano Carlos Finley identificara o mosquito Aedes aegypti como o vetor da doença. Oswaldo Cruz aceitou a sua tese de que o vírus da febre amarela infectava os humanos a partir dos mosquitos, e lhes deu combate sem trégua, com uma brigada de mata-mosquitos que pulverizava inseticida em todo e qualquer lugar considerado possível viveiro de mosquitos.

A varíola, responsável aqui por terríveis devastações, e a poliomielite, que produziu paralisias em centenas de crianças, ambas passíveis de controle com estratégias de vacinação, foram erradicadas na segunda metade do século 20. A análise histórica do processo de erradicação dessas doenças mostra claramente a interseção entre a ciência, a política e a sociedade. Não só a ciência precisa ter uma ferramenta efetiva e eficaz contra a doença − para o caso de ambas, havia vacinas −, como é necessária uma decisão política forte e coesa para garantir, por exemplo, os recursos necessários com vistas à implementação de medidas sanitárias que possam conter determinada epidemia.

Contudo, no final do século 20, a reemergência e a emergência de epidemias colocaram em xeque, por um lado, a precariedade das estruturas de saúde pública, no caso da dengue, e, por outro, a biomedicina, no caso da Aids. Findava a crença de que, no tocante às doenças infecciosas, tudo estaria revelado e, portanto, a luta contra todos esses males estaria praticamente ganha, uma vez que haveria meios de controlá-los sem maiores dificuldades. A Aids veio opor seu enigmático poder destrutivo a essa crença.

Doença desconhecida no meio médico, pois que surgida apenas no início da década de 1980, a Aids se mostrou devastadora para aqueles por ela afetados. Com os cientistas perplexos e os doentes aterrorizados, a Aids expandiu sua teia de contágio, por meio das redes sociais de um mundo globalizado, e logo se disseminou por vários países, configurando-se como uma pandemia. Por ter sido identificada inicialmente entre homossexuais masculinos, estes foram categorizados como grupo de risco, e a Aids passou a ser chamada de “peste gay”, explicitando uma concepção moral da doença. Contudo, ao mesmo tempo em que a ciência biomédica reagia rapidamente ao desafio posto pela emergência da Aids, buscando uma explicação para o seu surgimento, os atingidos pela doença também reagiram e se organizaram, para estabelecerem estratégias de proteção contra a doença.

As análises históricas contribuem para revelar as relações sociais, econômicas, culturais e políticas próprias de determinada sociedade na sua forma de reagir e interagir com determinadas condições de saúde e de doenças existentes. Se as interferências produzidas por uma epidemia atingem as mais variadas dimensões da existência humana, o enfrentamento da ameaça epidêmica envolve a mobilização não só dos recursos humanos e materiais, na organização dos serviços de atendimento aos doentes ou de respostas às suas consequências na vida cotidiana, mas, também, práticas culturais, rituais e simbólicas que são partilhadas pela sociedade por ela afetada.

Finalmente, no caso da Covid-19, hoje por todos nós vivenciada, caberia reforçar alguns elementos que a experiência acumulada ao longo do tempo em relação a fenômenos epidêmicos nos legou. Esses elementos devem se constituir para nós em instrumentos eficazes de enfrentamento das questões que a atual pandemia nos traz. É possível que, se soubermos manipulá-los com sensibilidade e inteligência, consigamos superar esse surto pandêmico com maior rapidez e quiçá com sucesso. E que num futuro breve ou distante não tenhamos que sofrer tudo outra vez para reaprender a arte de vivermos simultaneamente em natureza e sociedade. Eis os elementos/instrumentos que podem nortear nossas ações contra a pandemia de Covid-19 hoje:

1. Solidariedade ─ Em uma situação de epidemia, o problema nunca é apenas do indivíduo − é de todos e de todas as instâncias da sociedade. Requer um senso de coletividade bem desenvolvido.

2. Avanço da ciência e da medicina ─ O surgimento de uma doença epidêmica nova é sempre um desafio para a ciência. Assim foi quando surgiu a Aids e está sendo agora, com a ocorrência da Covid-19. O desconhecimento sobre a doença requer pesquisas em variadas áreas, em caráter emergencial, para permitir respostas rápidas. De toda forma, um microrganismo novo sempre é um grande desafio não só para a ciência, mas para os órgãos governamentais e para a própria população, que tem de mudar hábitos como, por exemplo, cumprir isolamento social.

3. Acreditar que diante de um microorganismo desconhecido, capaz de uma transmissão acelerada, as medidas de contenção da doença, as medidas de proteção da população têm que ser tomadas o mais cedo possível. A gripe espanhola, por exemplo, que se pensou, de início, tratar-se de uma gripe comum, levou à morte muito mais de 20 milhões no mundo, e, no Rio de Janeiro, 15 mil pessoas. Vale ressaltar que, em 1918, não tínhamos o desenvolvimento científico e tecnológico, nem as instituições de saúde que temos hoje.

4. Desconstruir preconceitos ─ No caso da pandemia de Aids, que no seu início foi atribuída, principalmente, aos homossexuais masculinos, não se prestou atenção, por algum tempo, que a doença também estava acometendo mulheres. É importante lembrar que o patógeno não tem preconceito e pode atingir qualquer pessoa, independente de gênero, raça, classe social. Contudo, há infelizmente muita desigualdade social na capacidade de acionar recursos terapêuticos.

5. Humildade ─ Lembrar, como declarou, em fins de março de 2020, o Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, de que é preciso ter humildade e aprender com os outros países que nos antecederam no enfrentamento da epidemia.

 

Por Dilene Raimundo do Nascimento
Pesquisadora e docente do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)

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