Como o Brasil nos vê: Média consolida visão negativa de Portugal

Por Carlos Fino

 

À diluição da memória – e, portanto, da consciência – em relação aos laços existentes entre Portugal e Brasil, alimentada pela narrativa dominante no sistema de ensino, acresce a negatividade sobre a herança colonial portuguesa que domina a vulgarização histórica veiculada pelos média, impregnando dessa forma o senso comum.
O filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), da realizadora Carla Camurati, é paradigmático a este respeito. Dada a grande divulgação assegurada pela Globo, o retrato totalmente caricatural da Corte lusa no Rio de Janeiro que nele se faz veio reforçar no imaginário do país uma imagem muito pouco abonatória sobre o papel histórico dos portugueses. Em contraste, aliás, com a visão da própria historiografia brasileira sobre o período, designadamente o clássico D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima [1], para quem a transladação da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro foi um “hábil golpe político” e D. João VI nada mais, nada menos, que o fundador da nacionalidade brasileira, tendo sido “sem dúvida alguma no Brasil (…) um rei popular”.
O mais irónico é que a descrição desbragadamente sarcástica e derrisória da Corte portuguesa feita por Camurati é toda ela tributária – quiçá sem que a própria realizadora disso se tenha apercebido – da visão ácida do historiador português Oliveira Martins, cuja influência no antilusitanismo histórico brasileiro é notória e que ressurge assim na contemporaneidade rediviva e atualizada através de um média tão poderoso como é o cinema. O que não deixa de ser significativo: afinal, mesmo quando é mais antilusitano, o Brasil acaba por deixar transparecer uma marca de origem portuguesa, como se fora este um fado que o persegue e de que não se consegue libertar.
Seja como for, a verdade é que a visão crítica de muitos ensaístas, historiadores publicistas e intelectuais brasileiros, de um modo geral, em relação à sua própria história bebe diretamente de fonte bem precisa: o pessimismo lusitano de finais do século XIX de que Oliveira Martins foi o grande epígono. Essa perspectiva sombria da história de Portugal, então acolhida e amplamente glosada do outro lado do Atlântico, acabou por formar uma espécie de “solo comum” de algumas das mais fortes interpretações do sentido da herança portuguesa na formação do Brasil; por isso, a leitura de qualquer dos seus livros “provoca ainda hoje em qualquer brasileiro culto (…) uma espécie de efeito de reconhecimento: está ali, sistematizado num conjunto coeso, muito do que no Brasil se foi pensando do que foi Portugal na história da civilização ocidental.” (Franchetti, 2007) [2]. Nesse sentido, o filme de Camurati é um marco: assinala a persistência, mais de um século depois, de uma visão depreciativa do Brasil em relação a Portugal (e, por extensão, em relação a si mesmo), que – permeando o sistema educativo e sendo retomada amiúde pelos média – assim se consolida, renova e (re)atualiza.
Entretanto, em 2002, a rede Globo voltava à carga com a produção de uma mini-série sobre os bastidores da Independência – Quinto dos Infernos [3]. Em estilo de metaficção historiográfica típica da literatura pós-moderna, a série confere predominância aos elementos mais próximos da cultura popular de massa, com proliferação do grotesco. A Corte portuguesa é aí retratada, uma vez mais, num tom chocarreiro, contribuindo para deixar na memória coletiva uma imagem derrisória das circunstâncias que rodearam a Independência do Brasil, bem como de algumas das suas principais figuras, incluindo o imperador D. Pedro I e (novamente) D. João VI.
Mas o mito procede, como se sabe, pela incessante repetição de si mesmo. Pelo que, já depois do Quinto dos Infernos, voltámos a ter nova obra cinematográfica em que mais uma vez é acentuada a ideia de que os grandes problemas do Brasil tiveram origem em Portugal. No caso concreto, as ilegalidades várias que grassam entre empresários e políticos em torno do financiamento dos partidos. O filme Polícia Federal: A Lei é para Todos, de Marcelo Antunez – longa metragem mais vista no Brasil em 2017 – retrata os meandros da Lava-Jato, considerada uma das maiores operações do mundo contra a corrupção e a lavagem de dinheiro. Aí se afirma, logo nos primeiros minutos da narração, em voz off, que “a corrupção, como a varíola e a tuberculose, chegou ao Brasil com as primeiras caravelas”…
O leit-motiv sobre a origem portuguesa dos males do Brasil prossegue, portanto, reforçado pela repetição nos média mais poderosos como são o cinema e a televisão. Assim se consolida um imaginário brasileiro claramente antilusitano, que só pode criar estranhamento, distanciamento e (in)comunicação no relacionamento mais profundo entre os dois países.
Dir-se-ia que, perante a necessidade intrínseca de, no seu movimento de autodefinição e afirmação nacionais, se demarcar do elemento português – quase sempre apresentado como algo estranho, vindo de fora, que tivesse sido imposto e depois expulso, nada havendo, portanto, que o relacione ou que o ligue aos brasileiros de hoje –, se cede quase sempre, no Brasil, à tentação de demolir a imagem das figuras lusitanas e/ou de origem lusa mais destacadas. Esquecendo, num movimento porventura inconsciente, que foram essas personagens que corporizaram e lideraram o movimento pela Independência, primeiro, e marcaram em seguida os esforços iniciais de construção da própria nação. Acaba-se dessa forma por operar uma desconstrução desestabilizadora dos fundamentos da própria identidade nacional.
Não se contesta, obviamente, a legitimidade de olhares humorísticos e/ou sarcásticos sobre a própria história, os quais podem ser até bastantes salutares, sobretudo quando a cultura oficial se torna sufocante e unidimensional. E sabe-se como os brasileiros se vangloriam de nunca perderem a piada, mesmo correndo o risco de perderem o amigo. O problema é quando, numa realidade identitária complexa e contraditória como a do Brasil, já marcada pela dificuldade de se constituir uma narrativa coerente aceite em igual medida por todos, as imagens estruturantes do imaginário nacional passam a ser alvo de desconstrução derrisória sistemática dos seus próprios elementos constitutivos e dos seus principais intérpretes. Nesse caso, corre-se o risco não só de se perder o amigo, mas de se perder a si próprio.
Como demonstrou a forte contestação que tiveram, no ano 2000, as comemorações oficiais dos 500 anos da descoberta, o Brasil não pode mais ignorar, na tessitura da comunidade imaginada que é a nação (Anderson, 1983) [4], as visões, os contributos e as reivindicações das populações indígenas e do movimento negro; mas também não pode – como queriam os modernistas de 1922 – simplesmente esquecer Portugal ou continuar (como fazem ainda hoje o seu sistema de ensino e a sua média) a denegrir a herança lusa como se ela fosse algo de estranho imposto de fora e não fizesse parte intrínseca e inalienável da sua própria história e da sua própria identidade.
Referencias:
[1] Lima, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006
[2] Franchetti, P. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Ateliê Editorial, São Paulo, 2007
[3] Quinto dos Infernos – mini-série da rede Globo de televisão, escrita por Carlos Lombardi e dirigida por Wolf Maya e Alexandre Avancini (2002) baseada em obras literárias de humor e sarcasmo sobre o período histórico do Primeiro Reinado (da Independência, em 1822, à Abdicação de D. Pedro I, em 1831)
[4] Anderson, B. Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a Origem e Difusão do Nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1983
Jornalista, doutorado em Comunicação pela Universidade do Minho. Foi conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal no Brasil (2004-2012)

Por Carlos Fino
Jornalista, doutorado em Comunicação pela Universidade do Minho. Foi conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal no Brasil (2004-2012)

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