A Réplica de Barreto

A crise mundial gerada a todos nós, e a quase todos os povos do Mundo, pelo fim do espaço do comunismo, com o consequente triunfo do neoliberalismo, depois potenciado, nos seus piores aspetos, pela globalização, determinou acontecimentos que hoje mesmo, mau grado o desnorte que reina neste nosso Portugal sem futuro, sempre acabam por nos trazer alguns momentos divertidos e repletos de graça. Um desses momentos foi a mais recente intervenção de António Barreto, no encontro de jovens que o PSD pôs em funcionamento.
Sem um ínfimo de espanto – cada nova intervenção de Barreto já é hoje razoavelmente previsível…–, Barreto veio replicar-nos uma velha ideia da luta da Aliança Democrática contra António Ramalho Eanes, quando este era apontado pelos dirigentes daquela como um perigoso… comunista. Propôs-se, então, e com grande profusão, a realização de um refendo à Constituição de 1976, com a finalidade de lhe pôr um fim, mas que por igual pudesse fazer aprovar uma nova Constituição.
Os seus defensores eram, afinal, o resíduo não político do regime constitucional da II República, que nunca haviam mexido um dedo no sentido de contrariarem a Constituição de 1933, nem o respetivo regime constitucional: não se mostravam abertamente contra tal texto, pelo que não tinham aborrecimentos, mas de há muito se vinham enfeudando, através de gerações diversas, ao redor de Marcelo Caetano, sendo por isso mesmo conhecidos como os meninos de Marcelo.
Simplesmente, cada ideia que apresentavam era pior que a anterior, pelo que, depois de terem ponderado Sá Carneiro, Galvão de Melo e António de Spínola, lá se determinaram a escolher António Soares Carneiro, com os resultados que se previram e viram, sendo que o candidato até acabou por perder no próprio local de nascimento. Hoje, como se sabe, António Ramalho Eanes é um concidadão nosso já completamente alinhado com a direita e com o atual poder político.
De molde que o tempo foi passando, encarregando-se o PS de responder positiva e linearmente a todas as exigências constitucionais da direita: esta gritava, aquele obedecia. E assim o estado do nosso regime constitucional chegou ao ponto que pode hoje ver-se, quase já sem referências mínimas de jeito àquilo que a Constituição de 1976 trouxe aos portugueses e que tanto nos beneficiou.
Pois, aí está a mais recente réplica daquela velha ideia do tempo da Aliança Democrática, reposta agora, e com a máxima naturalidade, pelo inefável António Barreto: defende um referendo para uma nova Constituição da República, depois de ouvidas as forças vivas do País. Um referendo que seria, como se torna evidente, um ato política e juridicamente inconstitucional. Embora possa por aí surgir, como se viu nesse tempo já longínquo, muito boa gente a defender a constitucionalidade de tal prática, uma vez que o Direito consente tudo e o seu contrário: o que vale hoje não vale amanhã.
Mas também podem surgir surpresas por parte de gente política oriunda da área dita socialista, ou seja, de uns quantos envergonhados que ainda hoje não conseguem assumir que erraram nas escolhas que fizeram e nas posições que assumiram ao longo da vida. Uma coisa é falar e assumir posições, outra ir estando calado e deixar que se instale a nova – velhíssima…– caravana. Tudo tem o seu tempo: da extrema-esquerda anteontem, comunista ontem, socialista hoje, neo-salazarista amanhã. Um ciclo conhecido e perfeitamente expectável.
Ou seja: António Barreto defende hoje, mais uma vez – não esqueçamos os Reformadores…–, o que defendia a direita ao tempo da segunda candidatura de Eanes, e que era, com as naturais adaptações, o que fez Salazar com o plebiscito da Constituição de 1933. E é até interessante constatar aquela amálgama de portugueses, apontados pelas suas profissões por António Barreto, que deveriam ser chamados a discutir o futuro do texto constitucional, porque a mesma é também uma réplica da velha Câmara Corporativa.
Hoje mesmo, falando com os pais, já idosos, de um conhecido académico, ainda nos foi dado rir sobre as mil e uma voltas a que o nosso País e os portugueses têm sido sujeitos desde a Revolução de 25 de Abril. E para quê? Bom, para usufruirmos de uma liberdade que permite apoiar partidos que prometem na campanha eleitoral um referendo ao Tratado de Lisboa, para logo pouco depois, num ápice, darem o dito por não dito.
Por fim, esta realidade muito evidente: António Barreto sabe muitíssimo bem que Portugal não sairá desta realidade em que hoje vive, até porque já estamos quase todos bastante pior do que se estava com o anterior Governo. O que dá razão ao que hoje um escritor nosso dizia: o desemprego traz violência e esta põe em causa a democracia. Ao que eu acrescento: e para mais com um povo que nunca foi grande crente na mesma… Portanto, nada como criar uma lufada de (aparentíssima) renovação do poder político direto, escolhendo uma nova Constituição, naturalmente muito menos garantística do que a atual. Tudo, claro está, sempre a pior. Ou seja: o Estado Novo, mas renovado com inúteis eleições. Temos quase quatro décadas de amostragem segura.
Percebe agora o meu caríssimo leitor a razão de Salazar nunca ter consentido a existência de partidos políticos, para mais tendo vivido a experiência dolorosa da I República, onde até chegou a ser presente a juízo? Triste sina, mas cuja causa própria foi, precisamente, a possibilidade dada aos eleitores na escolha do Presidente da República: ao escolherem uma personalidade conservadora, de direita, os portugueses abriram a porta a todo este corropio de iniciativas que já vão no plebiscito de uma nova Constituição. Foi o mais grave erro político cometido pelos portugueses desde Abril de 1974.

Hélio Bernardo Lopes
De Portugal

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