A pandemia do novo coronavírus em um Brasil desigual

Por Patrícia Soraya Mustafa

Diante da pandemia do novo coronavírus que assola o mundo, incluindo o Brasil, é preciso considerar algumas questões importantes, se desejamos, de fato, enfrentar esta crise sanitária com fortes rebatimentos sociais, econômicos e políticos.

O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, segundo Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). De um lado, em 2012 tínhamos 74 bilionários e, em 2019, 206, que acumulam uma riqueza correspondente a 17,7% do PIB nacional.

Por outro, contabilizamos miseráveis. 50% da população, ou 104 milhões de pessoas, com renda per capita de R$ 413,00 mensais; 5% de brasileiros, ou 10,4 milhões, que sobrevivem com R$ 51,00 por mês, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica. Miserabilidade também manifesta no alto índice de desemprego. São 12,6 milhões de indivíduos nesta situação; no trabalho informal, que aflige 41,4% dos trabalhadores, segundo IBGE/PNAD 2019. Há, ainda, a falta de moradia. Só na cidade de São Paulo, o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) estimou cerca de 40 mil pessoas vivendo nas vias públicas em 2019. Pelo último Censo do IBGE, cerca de 12 milhões de pessoas habitam em favelas. Some-se, também, a fome e o alto índice de adoecimento decorrentes, em grande parte, desses fatores socioeconômicos.

Nesse cenário, o novo coronavírus atinge a todos igualmente? Seguramente não. A maioria da população brasileira não tem recursos socioeconômicos para lidar com esta conjuntura, que se soma ao cotidiano de crises permanentes em que tenta sobreviver.

A fala de um morador em situação de rua, divulgada em um jornal de grande circulação, alertava para o fato de que eles só lavam as mãos quando chove, porque não têm acesso a água. A água é um bem natural vital para a sobrevivência. Sendo assim, como estas pessoas sobreviverão a esta pandemia, a qual requer que lavemos as mãos, utilizemos álcool em gel, dentre outras recomendações? Ou, como os moradores das favelas e/ou precárias moradias farão quarentena e manterão o isolamento necessário para frear o novo coronavirus? Como os milhares de desempregados, ou que o ficarão a partir de agora, somados aos trabalhadores informais, sobreviverão a esta pandemia? De que forma os milhares de encarcerados brasileiros, pretos e pobres em sua maioria, serão protegidos para não sucumbirem ao vírus?

Assim, para enfrentarmos a pandemia precisamos olhar para o nosso chão, a nossa gente, as nossas particularidades, as quais suscitam e suscitarão medidas sanitárias, econômicas e sociais urgentes e efetivas. Falo da responsabilidade de todos os setores: Estado, sociedade civil e mercado. Mas quero destacar, neste texto, as medidas estatais necessárias diante deste momento.

O Estado brasileiro, mercado e parte da sociedade civil defendem veementemente medidas de ajuste fiscal para gerar superavit primário, que tem reiteradamente beneficiado detentores do capital financeiro. De acordo com dados de 2020 da Auditoria Cidadã da Dívida, só no ano de 2019 foram gastos 38,27% ou R$1,038 trilhão do orçamento público federal para pagamento de juros e amortizações da dívida pública, contraída muitas vezes por motivação privada, como vem alertando reiteradamente a referida Auditoria.

E quanto o governo investe da parcela do orçamento público federal nas políticas de seguridade social e na educação? A Auditoria Cidadã da Dívida informa que, para a Saúde, o governo destina 4,21%; para a Previdência Social, 25,25%; Assistência Social, 3,42%; e Educação 3,48%. Dessa forma, como enfrentar esta pandemia e toda a crise desencadeada por ela com este pífio orçamento para direitos sociais tão elementares? Além do exposto, a partir do governo do Presidente Michel Temer (2016 a 2018) passou a vigorar a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que congelou por 20 anos os gastos primários, como Seguridade Social e demais direitos.

Se o Estado brasileiro continuar com seus rumos ultraneoliberais, em que o mercado importa mais que vidas humanas, não conseguiremos deter a crise instaurada.

Precisamos, imediatamente, de medidas que socorram a classe trabalhadora – subempregados, desempregados e trabalhadores que estão à beira de perder seus empregos; os idosos que não usufruem de benefícios previdenciários e assistenciais; os que vivem nas ruas e favelas; os encarcerados; pequenos produtores rurais; micro e pequenas empresas, que no Brasil são as que mais absorvem a força de trabalho.

Sugerimos que estas medidas sejam financiadas pelo orçamento fiscal, que é sugado anualmente para sustentar os bilionários nacionais e internacionais. Este orçamento é dinheiro público que advém dos impostos, taxas e contribuições que pagamos. Sugerimos que sejam revogadas as EC 95/2016 e EC 93/2016, esta última que desvincula recursos da seguridade social para o orçamento fiscal.

Desta maneira, ao contrário do que propaga o governo aos quatro ventos, teremos recursos para subsidiar os trabalhadores, sobretudo os informais. Somado a isso, sugerimos o aumento per capita do Benefício de Prestação Continuada (BPC) de ¼ do salário mínimo para ½ salário mínimo, ampliando, assim, o acesso aos idosos que não usufruem dos benefícios previdenciários.

Defendemos, também, a inclusão de novos usuários no Programa Bolsa Família, congelado pelo atual desgoverno. Segundo o Jornal El País Brasil, neste ano de 2020, antes da pandemia do novo coronavírus o Brasil somava em média 1,7 milhão de famílias – 5 milhões de pessoas, aptas a serem atendidas por este programa, mas ainda sem inclusão. Há dias o desgoverno atual anunciou a inserção de novas famílias, mas sem dizer como o fará. Lembrando que este Programa atende miseráveis e que o valor repassado não é suficiente para sanar as necessidades mais elementares, portanto, insuficiente para este momento de crise.

Sugerimos, ainda, mais recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS), seja para a compra de testes do novo coronavírus, necessários para controlar a pandemia, seja para ampliar o atendimento por meio de novos espaços e equipamentos. Mas, sobretudo, para proporcionar condições de trabalho para aqueles que arriscam cotidianamente suas vidas.

Defendemos, neste texto, algumas medidas essenciais que o Estado deveria tomar como forma de garantir um pacote amplo e protetor de políticas públicas para que possamos enfrentar e superar este momento de crise. Parafraseando o escritor uruguaio Eduardo Galeano na obra intitulada As veias abertas da América Latina, momento que abre as nossas veias, deixando a nu as mazelas históricas destas terras.

 

Por Patrícia Soraya Mustafa
Professora do curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, no câmpus de Franca – SP

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