A Crise Acadêmica de 1962

Teve há dias lugar uma espécie de romagem aos lugares que serviram de palco aos acontecimentos da crise acadêmica de 1962, e que se constituiu, por igual, numa espécie de comemoração de cerca de quatro centenas de jovens de há meio século, que então frequentavam as Universidades Clássica e Técnica de Lisboa.

Confesso que fiquei muitíssimo admirado com o modo sóbrio e desapaixonado como nos foram agora contados os acontecimentos que tiveram lugar nesse tempo distante. E arrisco dizer que todo aquele burburinho nunca teria tido lugar se Lopes de Almeida não tivesse sido o muitíssimo mau Ministro da Educação Nacional que facilmente Salazar poderia ter previamente percebido.

Fiquei admirado pelo modo simples e correto como os acontecimentos foram retratados agora, sendo de salientar, entre outros aspetos, os seguintes: ninguém morreu às mãos da polícia, fosse ela a que fosse; houve até o cuidado, no Governo Civil, de, na manhã seguinte às detenções, ser colocada à disposição dos detidos e detidas uma cafeteira com café com leite, sendo estes postos em liberdade ao início da tarde; não tiveram lugar julgamentos nos Tribunais Plenários; não foram agora relatados casos de feridos graves a serem levados aos hospitais; o reitor da Universidade Clássica de Lisboa não foi demitido da Função Pública; houve mesmo um jantar, com a presença desse reitor, num restaurante do Lumiar.

Em contrapartida, estranhei o silêncio destes nossos concidadãos em torno da RIA que teve lugar no Técnico, onde veio a vencer, embora por curta margem, a decisão de ir aos exames. Uma decisão que gerou feridas que ainda hoje sangram, como Jorge Sampaio contou na entrevista que concedeu a Maria João Avilez, ao final do seu primeiro mandato presidencial.

A uma primeira vista, e dentro do que conheço desde há décadas, ninguém foi ferido ou morto nessa crise académica de 1962. A prova desta realidade está na ausência de referências a tais factos, bem como a ausência de romagens aos cemitérios dessas vítimas que, felizmente, não existiram. Imagine agora o leitor o que não se teria dado se tal crise estudantil tivesse tido lugar na Espanha de Franco, ou na Itália (dita) democrata-cristã (mas paga pela CIA e pela Máfia), ou num qualquer dos países do antigo Pacto de Varsóvia, ou nos países da América Latina, ou, mesmo, nos Estados Unidos, ainda com um criminoso da estirpe de John Edgar Hoover à frente do FBI e bem no tempo do racismo norte-americano…

Objetivamente, e colocando de lado o ínfimo Partido Comunista Português, a (dita) ditadura de Salazar era uma ditadura brincalhona, ao menos, porque não era preciso ir mais longe, uma vez que a enormíssima maioria dos portugueses procedia como hoje se pode observar: não via, não ouvia, não sabia. A ideia de democracia vivia a anos-luz das preocupações dos portugueses. Ainda hoje, num sentido que se compreende, é esta a realidade.

Claro que a generalidade dos portugueses, dentro do que sempre se conheceu dos tempos anteriores, não hostilizou o Movimento das Forças Armadas, mas cedo se percebeu que o saldo ficaria por estas duas realidades: o fim da defesa das antigas províncias ultramarinas, com a consequente independentização desses territórios, e a instauração de uma democracia política, com a presença dos partidos e à semelhança do que se passava nas restantes democracias.

Hoje, já com trinta e oito anos de III República, nós podemos perceber que a abstenção nunca parou de subir; que se estruturou uma sociedade com um fantástico fosso social; que a justíssima estrutura do Estado Social está a ser conduzida pelo atual Governo ao seu fim; que a solidariedade entre os cidadãos baixou profundamente, ao contrário do que sempre estava presente antes de Abril; que os principais defensores desta democracia constituem hoje uma minoria ínfima dos mais poderosos e ricos; e que Portugal não terá futuro por muitas décadas.

Foi muitíssimo interessante poder ouvir de José Pacheco Pereira, na passada quinta-feira, a revelação do risco que se está hoje a correr no seio da sociedade portuguesa: nunca a identificação entre políticos e interesses foi tão grande em Portugal como atualmente. Quase não queria acreditar no que ouvia, mas, precisamente, por ser a realíssima verdade e vir de um militante, realmente democrata, do PSD. Será impossível, em princípio, ouvir um tal reconhecimento, por exemplo, da parte de António Barreto, oriundo do PCP, depois, do PS, e hoje já à beira do PSD…

Como se chegou, pois, ao atual estado de coisas? Bom, eu já dei a minha explicação sobre este tema por diversas vezes. Uma explicação que já se continha numa histórica carta de Marcelo Matias – o pai – a Salazar, nos tempos de De Gaulle em França, e que Jean Ziegler também refere no seu mais recente livro traduzido entre nós: OS NOVOS SENHORES DO MUNDO. Essa explicação é simples: por um lado, o socialismo democrático é um conceito vazio de conteúdo; por outro, a derrocada do comunismo nos países do Antigo Pacto de Varsóvia; depois o triunfo do neoliberalismo, levado às sete partidas do Mundo pela globalização, fortemente suportada na Organização Mundial de Comércio, que Ziegler define como uma máquina de guerra.

Entre nós, tudo se deteriorou com a vitória eleitoral de Aníbal Cavaco Silva, dado que um Presidente da República de direita e conservador acabaria, naturalmente, por potenciar o surgimento de uma governação de rutura com a Constituição de 1976, com o Estado Social e relançadora do neoliberalismo a toda a prova, potenciando a atividade lucrativa, mas secundarizando sempre a dignidade humana no plano material, envolvendo, sobretudo, os setores da Saúde, da Educação e da Segurança Social Públicas.

E foi perante o estertor potencial do PS, na anterior eleição para deputados à Assembleia da República, que acabou por nos ser dado ver Mário Soares conceder o seu apoio a Pedro Passos Coelho, ao deslocar-se à sede do PSD, na companhia de Leonor Beleza e de Alexandre Soares dos Santos, e ao repetir à saciedade que aquele era uma pessoa simpática e com que se podia dialogar!!

Hoje, perante a destruição dos setores públicos da Saúde, da Educação e da Segurança Social, o PS, a menos que prometa que voltará a dar-lhes vida, deixará de poder apresentar ao eleitorado uma proposta credível de governação. Basta olhar, por exemplo, a posição dos católicos face ao divórcio, ao aborto e ao (dito) casamento homossexual: estão já a movimentar-se para pôr um fim em tais realidades. Um facto simples de compreender, porque os católicos têm valores e defendem-nos. Dos dirigentes do PS, infelizmente, nós temos o exemplo do passado histórico: a direita grita, o PS cede. Ou seja, o PS deixou de ser credível, mas como partido que se reivindica do socialismo democrático.

Todos nós iremos ver esta realidade nas próximas eleições legislativas gregas, onde se prevê a completa pulverização do PASOK. E isto depois de ter sido a Nova Democracia a conduzir a Grécia à ruína em que hoje se encontra!! O problema está nisto: a direita é burlona e desprezadora da dignidade humana, mas afirma-o e defende-o com convicção. Ao contrário, os socialistas democráticos, defendendo o socialismo democrático, acabam por envolver-se no mundo neoliberal, onde só são aceites por conveniência dos poderosos da Economia e das Finanças. Um tema também mui bem explanado por José Pacheco Pereira na última Quadratura do Círculo.

E já não constitui fator de admiração o facto de, com elevada probabilidade, Nicolas Sarkozy vir a ganhar a próxima eleição presidencial em França, bem como Angela Merkel na Alemanha. E mesmo o caso de Obama, nos Estados Unidos, é ainda um caso sobre que se não devem deitar foguetes.

A consequência de tudo isto é já hoje evidente e vai-se tornando diariamente omnipresente: a morte de um negro norte-americano, na Florida, com o autor do homicídio a ser posto em liberdade; a carga policial no nosso Chiado, perante o quase silêncio do PS, com o pleno silêncio do PCP, bem como da CGTP e da UGT; os preparativos para uma guerra contra o Irão, bem como o fomento do terrorismo na Síria, oriundo a partir de fora; a nova guerra entre os Estados Unidos e a China, ainda em gestação, por causa das Terras Raras; o fim da utilização do conceito de ditadura nos manuais escolares chilenos, reportado ao tempo dos crimes da Junta Militar do Chile; a situação de Baltazar Garzón, em Espanha; e o recurso ao nosso Ministério Público, mas apenas para com os governantes de José Sócrates.

A ditadura, mas agora só na prática, e sempre suportada numa essencialíssima democracia formal, está de volta, e um pouco por todo o lado, com os novos ditadores oriundos de dois grupos: os trafulhas do tal socialismo democrático, que nada é realmente e que vai desaparecendo, e uma nova geração de políticos que pouco ou nada tiveram que fazer para chegarem ao topo da política, que hoje abandonam os mais velhos completamente à sua sorte. É um tempo terrivelmente desumano. Um tempo em que, como até Manuel Alegre reconheceu, é muito mais difícil resistir que no do Estado Novo de Salazar. Hoje sim, é dificílimo ser-se herói.

 

Por Hélio Bernardo Lopes
De Portugal

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