Crônica de uma destituição anunciada. Por Carlos Fino

Por Carlos Fino

Salvo volte-face de última hora, num improvável golpe de teatro, Dilma Rousseff deverá ser esta semana destituída da presidência da república do Brasil, acusada de ter cometido “crime de responsabilidade”.

A provável destituição ocorre num clima de aparente indiferença da opinião pública, mais preocupada de imediato com as consequências negativas da recessão económica – desemprego e inflação em alta – e em geral cansada das peripécias de um processo que se arrasta há oito meses e é encarado pelo cidadão comum como uma luta de grupos (no fundo, idênticos) pelo poder, longe dos reais interesses da população e do país.

Para esse estado de espírito contribuiu também a grande media, muitas vezes unilateral no tratamento da informação (aprovando em Temer o que criticava em Dilma) e considerando em geral o afastamento definitivo da primeira mulher presidente do país como um facto praticamente consumado.

Por outro lado, o protesto que o afastamento de uma presidente eleita, ainda há pouco tempo, por 54,5 milhões de votos podia suscitar foi travado pela desmoralização do PT devido ao seu envolvimento, primeiro, no Mensalão e, depois, no Petrolão – o imenso escândalo de corrupção na Petrobrás.

São a política e a economia, estúpido!

Num contexto de crise, em que aumentou drasticamente a precariedade do emprego; com uma media muitas vezes hostil e um judiciário altamente selectivo; com o PT, o seu partido, com posições nem sempre coincidentes e sem moral nem fôlego para convocar grandes protestos, o destino da presidente estava praticamente traçado desde o início.

Mais do que jurídica – como mostraram os debates posteriores, que não conseguiram mostrar para além de qualquer dúvida legítima, ter havido “crime de responsabilidade” cometido pela presidente, ainda que muitos afirmem o contrário – a questão foi desde o início eminentemente política.

Dilma (e com ela, o PT) pura e simplesmente perderam o apoio da chamada “base aliada”, os partidos do centrão, cujos votos no Congresso são indispensáveis para governar. Antes disso, pelos próprios erros cometidos, deixaram a economia derrapar, vendo a confiança dos empresários evaporar-se, os juros e a inflação subirem, o investimento parar e o desemprego crescer, com o rápido agravamento da situação de milhões de famílias.

É verdade que os media, a polícia e o judiciário não lhes têm sido favoráveis, bem pelo contrário. Agora mesmo, enquanto o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB, com comprovados milhões em bancos na Suíça, ainda consegue manter-se como deputado e ganhar tempo de manobra sem ser particularmente molestado, a polícia federal avançou com o indiciamento de Lula e de sua mulher, num caso incomparavelmente menor – o facto de terem sido beneficiados no usufruto real ou possível de duas propriedades que negam pertencer-lhes.

Vitórias pírricas

Para Dilma, a reeleição acabou assim por transformar-se num vitória pírrica. Mas, para a anterior Oposição, o acesso ao poder por via extra-eleitoral também traz consigo um sabor amargo.

Em primeiro lugar, porque muitos dos que acusam e julgam Dilma estão eles próprios comprometidos – um em cada três senadores responde a investigações ou acções criminais no Supremo Tribunal Federal (STF) por corrupção, crime eleitoral, lavagem de dinheiro, desvio de verba pública e crime de responsabilidade (o mesmo de que Dilma é acusada). Como escrevia há dias o site Congresso em Foco, “a lista de senadores “juízes” inclui até um parlamentar condenado pelo próprio Supremo a quatro anos e oito meses de prisão por fraude em licitações”!

Depois, porque sobre Michel Temer, o vice-presidente que agora vai ascender ao topo do poder, também impendem suspeitas de envolvimento, ainda que indirecto, em financiamentos irregulares de campanha, a exemplo aliás de outras figuras do novo executivo. Inelegível por oito anos por ter ultrapassado os limites de financiamento, Temer vê-se agora, apesar disso, instalado no vértice da hierarquia do Estado!

E ele, que concorreu em conjunto com Dilma e com o mesmo programa, sendo portanto co-responsável tantos pelos sucessos como pelos desaires, prontifica-se agora para aplicar uma política para a qual não recebeu a legitimidade das urnas.

Tudo isso deixa uma marca indelével de manobra política e de injustiça relativa  – para além da manifesta inépcia da própria presidente – que não escapa, obviamente, aos observadores internacionais – o Le Monde, da França, na sequência da Der Spiegel, da Alemanha, já classificou a mudança de poder no Brasil de “golpe ou farsa”, enquanto o New York Times, dos EUA, publicava um desenho mostrando Dilma cercada de ratos…

Por fim, mas não em último lugar, tudo indica que a actual aliança de forças políticas que se formou para derrubar Dilma e o PT está minada por contradições em torno da futura candidatura presidencial nas eleições de 2018, o que traz no bojo mais instabilidade.

Tudo isto para já não falarmos do impacto que a mudança de poder nestas condições vai trazer ao sistema político instituído no país, podendo criar, em vez do presidencialismo vigente até agora,  uma espécie de semi-parlamentarismo, em que a presidência fica à mercê das oscilações de forças no Congresso.

Difícil, neste contexto, não concordar com o El País, da Espanha, que há dias recomendava em editorial a realização de novas eleições.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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