BYE BYE BRASIL. Por Carlos Fino

ByeByeBrasil

Por Carlos Fino

Naquela que é porventura a sua obra-prima – “Bye Bye Brasil”, de final dos anos 70 – o cineasta brasileiro Cacá Diegues dá-nos conta, num registo realista com alguma evocação felliniana, da transformação por que passava então o país: transitando de uma era marcada pelo ruralismo, em que ainda contavam muito as diferentes realidades regionais, para uma outra, mais industrial e desenvolvimentista, em que a generalização da televisão servia de elo integrador e nivelador dos gostos e dos hábitos.

Ao ziguezaguear pelo Brasil em diferentes direções – do sertão semi-desértico para a orla marítima, desta para o interior do nordeste, daqui para o planalto central, onde crescia a nova capital modernista que concitava as esperanças numa vida melhor de milhares de imigrantes, e daqui de novo rumo a norte, até à Amazónia, ao encontro do índios – a caravana de saltimbancos Rólidei, de Lorde Cigano (José Wilcker) e Salomé (Betty Faria) acaba por se constituir numa metáfora do próprio país, em que o velho sonho desenvolvimentista de inspiração norte-americana esbarra em permanência com as persistentes dificuldades do subdesenvolvimento que vêm ainda do período colonial.

O filme de Diegues veio-me à memória ao assistir, no passado dia 17 de Abril, pela televisão, à sessão da Câmara dos Deputados que votou pelo processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. De repente, perante os olhos atónitos do mundo inteiro, eis que todo um Brasil que se julgava já superado, reemergia com uma força e por vezes até uma virulência insuspeitadas.

A chamada bancada da bíblia (evangélicos), do boi (ruralistas, sector exportador agro-indutrial) e da bala (fabricantes de armamento, defensores do porte de arma generalizado) mostrava que não é apenas influente – ela é porventura até dominante na sociedade, e pelo menos dá o tom e marca a pauta do parlamento brasileiro.

Depois de décadas em que se impôs no plano internacional – primeiro pela elegância cosmopolita do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, sustentado no êxito sem precedentes do Plano Real e no controle das contas públicas; depois, pela transição sem traumas para o líder mais carismático da sua história, o operário Luís Inácio Lula da Silva, que granjeou apreço mundial pelas suas políticas sociais – eis que ressurgia pela televisão um Brasil não apenas legitimamente conservador, mas assustadoramente arcaico.

Um Brasil bronco e orgulhoso de o ser, que aparentemente se prepara – na esteira da crise económica e política que o país atravessa – para tentar reverter muitas das medidas pós-modernas de defesa dos direitos das minorias que marcaram os últimos anos.

Essa imagem da sessão parlamentar transmitida urbi et orbe pela televisão – como na letra de Chico Buarque para o filme de Cacá Diegues, “eu vi um Brasil na TV”… – contribuiu certamente para acentuar as múltiplas interrogações que a generalidade dos observadores internacionais já se vinham colocando sobre a crise que o país atravessa.

Interrogações que vão desde a isenção do ministério público e da polícia federal (ao proporem e/ou realizarem investigações sobre uns, mas isentando ou esquecendo convenientemente outros), ao comportamento do judiciário (com juízes do Supremo tomando partido publicamente sobre temas políticos altamente polémicos) até inclusive ao modus faciendi dos próprios media (em que demasiadas vezes prevalece a opinião sem contraditório).

Neste contexto, a possibilidade das forças mais conservadoras poderem vir a impor políticas que não obtiveram a sanção das urnas ou foram mesmo derrotadas nos últimos actos eleitorais – é particularmente preocupante sobre o estado de saúde da democracia brasileira.

É verdade que o descontrolo financeiro chegou a um ponto – como escreveu este fim de semana o Prof. Delfim Neto – em que o executivo praticamente perdeu a sua margem de manobra. Mas isso não elimina a necessidade de legitimar pelo voto a viragem que o novo governo pretende operar, já que as políticas que agora se pretende aplicar foram derrotadas nas urnas nas últimas eleições.

Entretanto, agora que o afastamento – pelo menos temporário – de Dilma Rousseff está garantido pelo tempo (até 180 dias) que irá durar o seu julgamento no Senado, resta saber se o governo Temer que a irá substituir a partir de quinta-feira tem condições para se afirmar.

O crédito de que dispõe não é grande: o seu índice pessoal de aprovação no país é diminuto (não vai além de dois por cento); alguns dos ministros que indicou já são alvo de suspeitas e investigações dentro da Lava Jato, donde podem a qualquer momento surgir novas revelações e as consequências económicas e sociais da crise, em que avulta o aumento em flecha do desemprego (10 milhões), vão certamente gerar protestos, que o PT, alijado do poder, não se esforçará certamente por conter, bem pelo contrário.

Nestas condições, e a exemplo do que acontece nos regimes parlamentares, já que o recurso ao impeachment está sendo usado como um voto de desconfiança no executivo, a melhor solução seria realizar novas eleições. Mas o clima de confronto chegou a um ponto tal em que nenhum acordo entre as elites políticas brasileiras parece viável, o que exclui essa hipótese.

Temo, por isso, que vamos assistir ainda a novos agravamentos, antes que as coisas possam melhorar.

Há dias, a historiadora Juliette Dumont, do Instituto de Altos Estudos sobre a América Latina (Iheal), da universidade parisiense Sorbonne Nouvelle, disse até que “O país cometerá um suicídio político”, se o Senado aprovar o pedido de impeachment de Dilma.

Não são boas notícias para o Brasil, que consome nesta crise boa parte do capital de imagem e projecção internacional que os seus últimos presidentes e a acção continuada da sua diplomacia souberam conquistar nas últimas décadas, a ponto de Brasília ter podido sonhar com um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Resta esperar que ao contrário da caravana do filme, que só se modernizou à custa da venda de minérios para estrangeiros, acabando por prosseguir ad infinitum o seu rumo nostálgico país afora, repetindo sem fim um destino secundário, o Brasil consiga superar com êxito a presente crise, consolidando a sua democracia e acabando por retomar o caminho de superação da sua canga atávica, a fim de um dia poder alinhar com os países desenvolvidos do mundo e desmentir a maldição que sobre ele pesa de ser sempre o país do futuro.

É por esse desfecho que nós, portugueses, devemos torcer, cientes de que o fracasso do Brasil sempre será o nosso fracasso, e tendo também muito claro que com ele sempre haveremos de partilhar o sucesso.

Brasília, 08 de Maio de 2016

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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