Brasil – O Triunfo da Hipocrisia? Por Carlos Fino

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Por Carlos Fino, em Brasília

Sem surpresas, a Câmara dos Deputados brasileira aprovou a noite passada por larga maioria a abertura do processo de destituição da presidente Dilma Rousseff, que segue agora para apreciação pelo Senado.

Não foi um espectáculo bonito de se ver. Invertendo a célebre frase de Chico Buarque, poderíamos dizer que “Não foi bonita a festa, cara!”: tumulto, agitação permanente, atropelos, discursos exaltados, exibição de faixas e cartazes em favor e contra os intervenientes na tribuna e até por detrás da própria mesa da Assembleia! – um burburinho pegado que – é o mínimo que se pode afirmar – não dignifica a imagem do Brasil.

Em poucos dias de um mecanismo processual pouco ou nada transparente, uma vez que nos bastidores de um lado e do outro fervilharam promessas e trocas de favores em termos que configuram compra de votos, a Câmara baixa do Parlamento brasileiro desfez perante o olhar espantado do mundo inteiro, a imagem tão laboriosamente construída pela diplomacia do país nos últimos anos – a de um Brasil emergente e cada vez mais seguro de si, superando a herança secular da desigualdade e aspirando até a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O que se viu foi, pelo contrário, a imagem de um país ainda emocionalmente instável, com dificuldade de conviver de forma serena com a natural diferença de opiniões e uma representação parlamentar em que os grupos particulares de interesses – bancada ruralista, bancada evangélica e outras – tendem a sobrepor-se ao interesse geral.

Um Parlamento em que a maioria dos seus membros (60% segundo a Transparência Brasil) são réus, acusados ou de uma forma ou de outra estão envolvidos em processos criminais – alguns com condenações judiciais proferidas! – por corrupção, fraude eleitoral, crime ambiental, rapto, tortura, extorsão e até homicídio.

Para cúmulo de tudo isto, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff – sobre a qual não impendem quaisquer acusações de enriquecimento pessoal – foi dirigido do princípio ao fim por um homem – Eduardo Cunha – actual presidente da Câmara dos Deputados, que é réu em processo de corrupção a decorrer no Supremo Tribunal Federal/STF por ter recebido em contas no estrangeiro (já confirmadas pelas autoridades suíças) algo como 40 milhões de dólares.

Cunha abriu o processo de impeachment contra a presidente logo que os deputados do PT na comissão de ética da Câmara que analisa o seu caso se recusaram a votar em seu favor.

Com a vitória que obteve a noite passada, o líder parlamentar está agora mais protegido e pode até ser ilibado, conservando o seu lugar como deputado e mantendo por isso foro privilegiado.

Como dizia há dias Sílvio Costa, do site Congresso em Foco, citado pelo New York Times, para certas figuras, vencer uma eleição para deputado é como obter uma licença para roubar: “Neste sistema grotesco, os que mais roubam são os que têm mais poder”.

AS RESPONSABILIDADES DO PT

Não se trata de bons de um lado e maus do outro – trata-se da própria essência do sistema político do país, em particular do sistema eleitoral, cujo financiamento “passa pela corrupção” – como afirmou recentemente o delegado da operação Lava Jato, Carlos Santos Lima.

Falsas doações legais por parte das empresas, que oferecem subornos para obtenção de contratos com empresas públicas, disfarçando os valores da “propina” no montante global – são aparentemente o pão nosso de cada dia que corrompe o sistema e em que, de uma forma ou de outra, todos os partidos parecem estar envolvidos.

O PT, que durante anos clamou contra a corrupção, quando chegou ao poder pactuou largamente com essa situação – daí os escândalos do Mensalão, primeiro, e do Petrolão, depois.

A diferença é que, no caso concreto de Dilma (ao contrário do que aconteceu com Collor em 1992), ela não parece ter-se beneficiado pessoalmente do sistema, o que faz da ainda presidente uma avis rara e torna o processo de que é alvo um absurdo.

Com a agravante do processo de impeachment contra ela ser conduzido por um réu altamente suspeito de corrupção – Eduardo Cunha – e poder ter como resultado final a entrega do poder a um vice – Michel Temer – sobre o qual pesam igualmente acusações de envolvimento em esquemas de negócios pouco transparentes.

A Procuradoria e o Supremo, que conhecem bem o “dossier” Cunha, poderiam ter impedido a farsa, mas preferiram lavar as mãos, deixando tudo transcorrer com aparente normalidade, em nome da não ingerência do poder Judiciário nas prerrogativas do Legislativo.

Mas a verdade é que, sendo as coisas o que elas realmente são, por detrás do verniz da aparente legalidade, o que temos é um “julgamento” de alguém com currículo pessoal acima de muitos dos seus julgadores. A sua eventual condenação, a confirmar-se no Senado, seria portanto o triunfo da hipocrisia.

Não que não haja motivos fortes de críticas a Dilma – desde erros no plano económico, incluindo o congelamento dos preços da gasolina e uma baixa artificial dos preços da electricidade e dos juros em ano de eleições, até à rigidez de comportamento, autoritarismo e inabilidade de articulação política, a começar pelas tensas relações que manteve com o seu próprio vice e que acabaram por ser-lhe fatais.

Não é por acaso que a sua popularidade está pelas ruas da amargura e a maioria apoia o seu afastamento.Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Tal como as coisas hoje se apresentam, mais parece estarmos perante uma teia sabiamente urdida e manipulada – conjugando denúncias da Lava Jato amplificadas pelos media, que realçam umas e descartam outras; decisões de não intervenção por parte do Supremo e processo declaradamente político no Parlamento – para operar no país uma mudança drástica de política.

Concretamente, com vista a substituir o chamado “populismo do PT”, com as suas múltiplas políticas sociais, pelas receitas consagradas do neo-liberalismo. Uma mudança eventualmente até justificada, mas que terá de ser primeiro legitimada nas urnas. Sem novo voto e contrariando o resultado de eleições anteriores, qualquer mudança de política – pela força como em Kíev, ou por meios jurídico-parlamentares, como em Brasília, tem inegavelmente um nome – é golpe.

Só faltava agora que, depois do impeachment, viesse ainda a prisão de Lula, para satisfazer um inegável desejo de vingança por parte de sectores sociais e políticos que nunca se conformaram com a ascensão do operário nordestino ao poder e acima de tudo para evitar a sua possível candidatura em 2018. Aí, o golpe seria perfeito.

Descontentamentos com governos e governantes resolvem-se nas urnas, não pela pressão das ruas nem – muito menos – em processos de legalidade duvidosa.

Esse é um princípio que a jovem democracia brasileira ainda terá de assimilar para que o país possa um dia assumir com toda a serenidade o lugar a que aspira e a que tem pleno direito – como se dizia in illo tempore – no concerto das nações.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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