Entrevista: O Monólogo Fernando Pessoa Nu Espelho

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Por Ingrid Morais

Fernando Pessoa (1888-1935), dividido em vários heterônimos como se uma única existência não fosse suficiente para expressar todos os seus sentimentos e contradições.
Um poeta que fala do campo, da cidade, da sua amada e eterna Lisboa, pois bem sabia que ao descrever sua aldeia poderia tornar-se universal.
Um homem de hábitos simples, com seu chapéu, seus óculos e um sobretudo escuro que compõem um personagem mítico. E bastava uma mesa num canto de uma tabacaria no agito ou na calmaria, munido de uma caneta e algumas folhas de papel para transformar o efêmero do seu cotidiano em obras-primas imortais.
Um modernista que em muitos sentidos, estava à frente de seu tempo.
Se ele tem uma mensagem a dar-nos, como eu creio que tem, é obrigação nossa conhecer seu trabalho. Senti-me muito feliz ao descobrir que um espetáculo está revivendo suas obras no momento em que completou 81 anos de sua morte.
Fernando Pessoa Nu Espelho é um monólogo sob a direção de Mário Goes e interpretado por Fernando Silveira, que despe o famoso personagem para falar da alma. Somos agarrados e fascinados do começo ao fim.
Nessa entrevista, Fernando Silveira revela como é interpretar de forma irreverente o grande existencialista português.

Mundo Lusíada: Fernando Pessoa era um poeta de muitos heterônimos, podemos dizer que o ator também passa por um processo semelhante, pois vive muitos personagens?
Fernando Silveira: Sim. De um tempo pra cá cheguei a pensar nisso. A gente passa a vida inteira tentando ser alguém, criando várias personalidades. Até tem um poema do Pessoa que diz: “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não. Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças.” Nós corremos esse risco né, você passa a vida inteira tentando, não só o ator, em qualquer profissão, tentando ser o melhor na escola, o melhor filho, o melhor na sociedade, mas e o melhor de você? Quando que você é você mesmo? Esse espetáculo questiona um pouco isso, quando você tenta tirar essas máscaras elas já estão grudadas na sua cara porque já se habituou tanto a isso que já não percebe mais. É como tirar o celular de alguém – não sabe mais andar, não tem um GPS. Então por isso acho que é sempre bom as pessoas saírem do teatro refletindo um pouco. Eu não tenho a pretensão de mudar a origem de ninguém e nem a minha, mas acredito que o teatro me faz melhor a cada dia.

ML: Cite a diferença entre representar no teatro, no cinema e na televisão.
FS: Olha, a minha experiência com televisão é pouquíssima, mais com comerciais e tal. Mas o teatro é a arte viva. Pra mim e pra todos os atores que você fizer essa pergunta a resposta será a mesma. É no teatro que você dá tua alma, teu sangue. É aqui que você aprende que é como pular de paraquedas. Ainda mais um monólogo, que sou eu e a plateia. Aqui o diretor teve o trabalho durante dois meses de direção e agora é comigo e com os meninos da técnica. No cinema também tive pouquíssima experiência. O cinema eu acredito que seja a arte do diretor e o teatro, a arte do ator. Já a TV é mais para vender produtos.

ML: Qual o heterônimo e o poema de Pessoa que mais aprecia?
FS: Fernando Pessoa criou Alberto Caeiro que vivia no campo e eu vivi no campo. Acabei de voltar de Minas agora, então a poeira, o vento que passa, a folha que cai, essas coisas se perderam. Nós estamos muito no “ter” do que no “ser”. Aí quando eu desço pra Juiz de Fora, que vou pro sítio… você sente a natureza, sente que faz parte disso, entendeu? E o Alberto Caeiro é um heterônimo que me agrada bastante. O Álvaro de Campos é aquela coisa mais visceral… é esse conflito do Alberto Caeiro com o Álvaro de Campos que o espetáculo mais pega. Porque um meio que critica o outro, sabe? Como diz o Álvaro de Campos: “Que pena que tenho dele!/ Ele era um camponês./ Que andava preso em liberdade pela cidade. /Mas o modo como olhava para as casas,/ E o modo como reparava nas ruas,/ E a maneira como dava pelas coisas,/ É o de quem olha para árvores,/ E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando/ E anda a reparar nas flores que há pelos campos…”
É como se eu trouxesse o meu pai que tá lá no sítio e como disse Fernando Pessoa: “Felizes os camponeses que vivem nos campos e entram na morte como se entra em casa”. Então pra eles é acordar, comer, beber, dormir e morrer. E aqui se eu o trago, se ele vem pra cidade, ele perde isso. Imagine ele fazendo o cigarrinho de palha e o povo correndo pra lá e pra cá. “É como esmagar flores em livros, é como colocar plantas em jarros”. Essa é a crítica do Álvaro de Campos para o Alberto Caeiro.

ML: Alberto Caeiro é mais existencialista?
FS: O Caeiro é mais a alma do Pessoa. Foi um grande mestre do Fernando Pessoa, tanto que no espetáculo há esse encontro dos dois. E tem outros heterônimos… Ricardo Reis que é mais arcaico e inclusive foi citado na outra montagem que fiz. “Lídia vem sentar-te comigo a beira do rio…” Ele convida pro amor e depois ele mesmo desconvida. “Desenlacemos as mãos. Não vale a pena…” Pro Fernando Pessoa o amor platônico era mais interessante. Ofélia foi seu grande amor a vida toda. Inclusive a família da Ofélia tem em Portugal um Museu sobre Fernando Pessoa. Graças a ela, a memória do Fernando Pessoa sobrevive.

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Ingrid Morais entrevista Fernando Silveira.

ML: Tem algum outro poeta que gostaria de interpretar?
FS: Eu pretendo fazer algo sobre o grande amigo do Fernando Pessoa que foi o Mário de Sá Carneiro. Ele tentou meio que imitar Fernando Pessoa e acabou suicidando-se aos trinta e poucos anos de idade. Ele é um autor que eu gostaria de fazer alguma coisa. Estou muito envolvido com o Pessoa, não penso em outro. Quis fazer Drummond. Fiz “As Pessoas de Drummond” numa época, mas os direitos autorais… tem que esperar mais de 70 anos… até consigo, tenho contato com a agência literária do Rio de Janeiro, eu consigo fazer um acordo. Se entrar plateia eu pago os Direitos Autorais. Fazer literatura é lidar com a possibilidade do teatro vazio. Porque quem vai ao teatro hoje quer saber se é comédia, querem rir mas não querem pensar. Aí é complicado. Mas eu insisto. É como diz o Fagundes: “Ah escolhi uma pessoa pra jantar, comer uma pizza, vamos ao teatro antes? Pra não ficar só na pizza, sabe?” Tanto que tem companhias que funcionam assim: “Compra o ingresso, ganha a pizza”. Aqui não tem essa pretensão. Ano que vem quero fazer outro trabalho sobre Fernando Pessoa. Tem uns textos que comecei a pesquisar e não coube nesse espetáculo, que são mais sobre religiosidade. Tem umas coisas engavetando, que eu vou juntando.

ML: Fernando Pessoa era um poeta ateu que realizou uma obra metafísica. Concorda?
FS: No espetáculo mostramos que Fernando Pessoa foi o primeiro a traduzir Madame Blavatsky. Nessa busca do eu, qualquer um de nós, quando abre o jornal vai direto na página de horóscopo. Chega ao final do ano, se tiver uma cartomante de bobeira você pede pra tirar uma carta. Sai da Igreja, passa na macumba, né? Galinha preta tá caríssima hoje em dia!
Não lembro a história direito, mas teve um esotérico que inclusive narrou a morte dele, acreditou nessa morte, porque ele gostava de criar essas historinhas e se ver de fora, sabe? E no esoterismo acho que ele acabou se encontrando um pouco. Ele também frequentou a Rosa-Cruz. Como diz num texto aqui do espetáculo: “E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente”. Ele criou um deus menino, deus verdadeiro, palpável. A inocência. Não esse deus que castiga, proíbe. O deus da liberdade, da natureza mesmo, que faz tudo isso funcionar. E que eu acredito também.

ML: Por que Fernando Pessoa é mais popular do que Camões?
FS: Porque não teve pretensões. Inclusive ele não gostava de ser chamado de um novo Camões, nada disso. Tanto que após cinquenta anos do seu falecimento é que viram a importância dele e o levaram pro mesmo cemitério de Camões. Quando ele ganhou o prêmio pelo seu livro “Mensagem”, nem foi buscá-lo. O espetáculo fala um pouco disso: “Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos, /Eles lá terão a sua beleza, se forem belos./ Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,/ Porque as raízes podem estar debaixo da terra/ Mas as flores florescem ao ar livre e à vista./ Tem que ser assim por força./ Nada o pode impedir”. Ele ia escrevendo. E deixou fragmentos. Não deixou a obra completa. Ele não procurou o fim, ele foi vivendo seu dia-a-dia com a alma, com a verdade que ele acreditava. Não teve uma preocupação como a gente tem hoje de “chegar lá”. Ele foi fazendo… como eu faço também.

ML: Por que navegar é preciso e viver não é preciso?
FS: Porque navegar é preciso, não dá pra brincar com uma coisa tão séria, é como pilotar avião. Viver não é preciso, por exemplo, ator ruim não mata ninguém. Viver não é preciso, viver é experimentar. Não existe uma precisão. O que é agora daqui a um minuto já não é mais. Agora o amor, por exemplo: está amando uma pessoa hoje, amanhã pode não estar mais. É vulnerável. A vida é frágil. Nós somos frágeis. A gente nasce, esquece-se de viver e vive como se não fosse morrer. E quer muita precisão na vida, se irrita e fica nervoso porque não deu certo uma coisa. Se não deu certo, há outra possibilidade. Tem um novo dia. Assim como o sol e o vento, todos os dias eles estão aí. Na verdade essa frase não é do Fernando Pessoa. É uma frase de um navegador antigo, pra que as pessoas quando fossem pro mar se sentissem mais seguras.

ML: Quais semelhanças (além do nome) você vê entre o Fernando Silveira e o Fernando Pessoa?
FS: Na verdade o outro espetáculo era “Fernando em Pessoas” e esse, “Fernando Pessoa NU Espelho” porque tem uma cena de nudez no espetáculo, pra tirar a roupa pra falar da alma. Porque nós não somos o que vestimos. Somos o que somos. As coisas são o que são. Eu acredito que estou aprendendo muita coisa com Fernando Pessoa. Virei um seguidor desde a primeira poesia que eu li, desde a primeira vez que eu vi alguma coisa (foi no show da Maria Bethânia que ela declamava)… gente, como pode? Depois eu vi que eram vários autores num mesmo autor. Eu gosto porque a realidade me cansa um pouco. Se eu fizer reunião comigo mesmo, acho que eu peço pra sair. Eu sou insuportável (risos).
ML: Tudo vale a pena quando a alma não é pequena?
FS: É verdade. Tudo vale a pena se você botar alma. “E o poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. Isso é legal também porque o Pessoa brinca com esses sentimentos dele mesmo. Quando você vê já tá velho, bêbado, e não sabe mais a realidade que você queria viver.

A temporada do espetáculo que se encerra em 09 de dezembro no Teatro do Ator e que vem contando com o inestimável apoio de Gabriel Veiga Catellani, está à procura de patrocinadores para prosseguir em cartaz. Empresários e amigos da comunidade interessados podem entrar em contato com o ator Fernando Silveira pelo e-mail [email protected] ou pelos telefones: (11) 99832-5590 / (11) 2803-0203.

SERVIÇO
Fernando Pessoa Nu Espelho
Teatro do Ator. Pça. Franklin Roosevelt, 172 – Tel: (11) 3257-3207
Sex, 21h.
R$ 50,00. Até 09/12. 16 anos.

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