O STF e o ano de 2013

No campo do direito, o ano de 2013 foi marcado pelo julgamento do mensalão, onde a discussão recaiu, fundamentalmente, sobre se caberiam ou não embargos infringentes da condenação dos acusados pela prática de dois crimes, segundo a maioria da Suprema Corte, ou seja, o crime de lavagem de dinheiro e o de formação de quadrilha.

É que, para estes dois delitos, alguns dos réus tinham obtido quatro votos pela absolvição, o que, segundo o regimento do Supremo, justificaria a interposição de embargos infringentes para uma reanálise do caso.

A emoção popular, que contaminou algumas das manifestações dos Ministros – que com veemência pouco comum naquela Corte expressaram suas convicções -, decorria do fato de que, com a nova composição, pela substituição de dois ministros (Cesar Peluso e Carlos Brito), os quais votaram pela condenação, poderia a votação de 7 a 4 pela condenação, transformar-se em 6 a 5 pela absolvição.

Assim, os réus mais conhecidos poderiam escapar do regime de encarceramento fechado, para um regime semiaberto ou domiciliar, conforme a dosimetria da pena.

Se tal ocorrer em 2014, haverá uma profunda frustração popular, pois a sociedade aguarda uma condenação exemplar, capaz de mostrar que a impunidade acabou no país.

Ocorre que a Suprema Corte, embora uma corte política, não pode deixar de conformar o direito, dentro dos limites máximos que a exegese possibilita, risco de transformar a aplicação de lei em justiça alternativa. Em outras palavras, há um campo flexível de interpretação jurídica que, todavia, não pode desaguar na criação de direito novo pelo Poder Judiciário.

O Judiciário é sempre um legislador negativo. Caso se transforme em legislador positivo, assumindo funções próprias do Parlamento, colocará a sociedade em perigo. Habilitadíssimos, Suas Excelências, para aplicar o direito positivo, não têm mandato popular para inovar o direito, à falta de representação da sociedade, visto que os ministros da Suprema Corte são escolhidos por uma única pessoa e não por 130 milhões de eleitores.

Terminou, portanto, prevalecendo a interpretação de que o regimento da Suprema Corte não fora revogado por lei de 1991, que não mais previra o cabimento daquele tipo de recursos.

Com o trânsito em julgado de algumas decisões, os primeiros condenados começaram a cumprir suas penas. Poderá tal cumprimento redundar para quem tenham que responder por outros crimes, que implicariam regime fechado, serem beneficiados, quando da condenação, pela redução da pena, por bom comportamento e serviços prestados, o que vale dizer terminariam por cumprir em regime semiaberto o total das condenações.

Deverá, novamente, ser discutida a denominada teoria do domínio do fato, que embasou os votos de alguns dos ministros para condenar principalmente o considerado artífice do mensalão, Ministro José Dirceu, em face de as provas materiais serem insuficientes, embora houvesse provas testemunhais.

Causou-me um misto de perplexidade e bom humor que uma longa entrevista concedida à brilhante jornalista Mônica Bergamo para a Folha de São Paulo, fosse quase que inteiramente ignorada e que [m1] Comentário: Excluído “em” apenas dois parágrafos dela causassem desproporcional impacto.

Tive mesmo a impressão de que, para os outros, aqueles dois parágrafos estariam a concentrar não só tudo o que escrevi na vida, mas toda minha concepção jurídica da ordem social. Nesse trecho da entrevista, eu disse que a teoria do domínio do fato, tal como foi aplicada na Ação Penal 470, trazia insegurança jurídica e que, se tivesse que ser aplicada, quem teria o domínio do fato completo seria o presidente da República.

Como um velho e modesto advogado provinciano, aprendi com meus mestres – à época em que os lentes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco eram criadores de teorias, e não reprodutores eletrônicos ou presenciais de teorias alheias – que a letra da norma, na esmagadora maioria das vezes, exterioriza o seu conteúdo. Meu velho e saudoso mestre Canuto Mendes de Almeida abominava as sofisticações teoréticas, lembrando sempre que, por destinar-se a ser aplicado, deve o direito ser inteligível pela sociedade, pois a clareza do legislador atesta a fidalguia do governante.

Claus Roxin não foi o criador da teoria do domínio do fato, embora seu mais conhecido intérprete. Adaptou-a de Hans Welzel (1939), seu verdadeiro autor, à sua concepção própria e não pretendeu impedir outros juristas de fazerem o mesmo. Em direito, não há marcas e patentes a serem preservadas e a Ministra Rosa Weber, quando a ela se referiu, apresentou-a conforme sua leitura.

Quando, nos dois parágrafos e na breve nota que publiquei na Folha, aludi a seu criador (Welzel) e a seu mais conhecido intérprete e inovador (Roxin), apenas disse que tal teoria, segundo o meu direito de interpretá-la, foi aplicada à falta de prova material consistente.

Lembro que, se há prova material contra quem comanda uma ação, a teoria é despicienda. As provas, por si só, já servem para condenar e, conforme o nível da participação do protagonista na condução dos atos delituosos, as penas serão agravadas. Quando as provas materiais inexistem, havendo apenas indícios ou provas testemunhais, é que se lança mão de uma teoria agregadora do comando.

A aplicação de teoria do domínio do fato a Videla e a Fujimori, decorreu de serem presidentes da república. Embora os crimes tenham sido praticados por seus subordinados, estavam estes sob seu comando.

É bem verdade que Hans Welzel não conseguiu a aplicação da teoria aos crimes praticados pelo partido nazista. Para Welzel, quem determina a execução do crime não é dele partícipe, mas autor.

O certo é que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, que se referiram à teoria, interpretaram-na com a liberdade própria de doutrinadores, não podendo ser criticados de o terem feito, de acordo com suas convicções.

Eu, pessoalmente, nos dois curtos parágrafos da longa entrevista, discordando da conformação que a jurisprudência brasileira dá à teoria do domínio do fato e dos eminentes Ministros que a adotaram, suscitei minha preocupação de que sua adoção, sem que haja provas materiais consistentes, pode trazer insegurança jurídica. E manifestei minha preferência, em direito penal, pela teoria que levou o Supremo Tribunal Federal, após o impeachment do presidente Collor, a absolvê-lo por falta do nexo causal entre conduta, resultado e prova material consistente.

O aspecto positivo dos dois parágrafos, todavia, foi abrir-se um debate sobre a matéria, que permitirá o aparecimento de novas exegeses sobre o tema levantado por Hans Welzel.

Embora haja em pauta outros temas relevantes para serem discutidos na Suprema Corte – como, por exemplo, se os requisitos para gozo das imunidades do terceiro setor, deveriam ou não ser veiculados por lei complementar; a incidência ou não do I. Renda sobre lucros não internalizados no país por subsidiárias no exterior; a incidência do COFINS e PIS na base de cálculo do ICMS, assim como muitas outras questões colocadas em repercussão geral – a permanência do “mensalão” em julgamento, considerado o maior caso da história do Pretório Excelso, é que dominou a audiência popular, devendo ainda continuar a ser objeto de especulações sobre como decidirão S. Exªs., no ano de 2014.

É que o processo do mensalão passou a ser símbolo do combate à corrupção, e o povo gostaria que a decisão da Suprema Corte fosse exemplar na condenação. Ocorre que os onze Ministros têm o compromisso de manter a ordem jurídica e preservar a lei suprema, podendo, nas decisões que emanam para tanto, agradar ou não aos anseios populares.

 

Dr. Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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