Coração de Portugal em chamas, por Carlos Fino

Pampilhosa da Serra, 18 de junho de 2017. PAULO NOVAIS/LUSA

Por Carlos Fino

As imagens são dantescas.

Primeiro, durante o pico dos incêndios, pelo rubro intenso das chamas – um mar de fogo alastrando pela floresta e colocando rapidamente em perigo as casas circundantes.

Depois, no rescaldo, pelo tom sépia e cinzento a envolver tudo num silêncio de morte – das árvores e propriedades calcinadas aos esqueletos retorcidos dos carros incendiados, surpreendidos na armadilha de uma fuga impossível e desesperada para escapar daquele inferno.

Na tarde deste sábado, a EN 236, no centro-norte de Portugal, transformou-se subitamente numa verdadeira estrada da morte: das 62 vítimas fatais destes incêndios, 47 registaram-se precisamente nessa via, com as pessoas a morrerem por asfixia e pelo fogo, dentro ou fora dos veículos.

O país está naturalmente em choque e as autoridades decretaram luto nacional por três dias. Ao mesmo tempo, gerou-se uma onda imensa de solidariedade para ir ao encontro das pessoas que perderam bens e família, algumas – todo o esforço de uma vida.

Mas há outros sentimentos para além da dor e da ajuda – há também um misto de consternação e raiva, de impotência e revolta perante uma tragédia que desde os anos 1980 se vem repetindo sem fim à vista – a dos grandes incêndios florestais que todos os anos assolam o país, devorando as florestas nacionais e fazendo numerosas vítimas, quer entre a população civil, quer entre os bombeiros e guardas nacionais.

Em 2003, atingiu-se um volume recorde de floresta ardida – 425.000 hectares, o que coloca Portugal no topo do ranking europeu nesta matéria. Só o ano passado, coube a Portugal mais da metade de toda a área ardida nesse ano no velho continente!!

Não é mais possível continuar assim. Alguma coisa vai ter que mudar.

É certo que, desde o início dos grandes incêndios, nos anos 80, sobretudo a partir de 2003, muita coisa já se fez, em termos de estudos, reflexão, planificação, reequipamento técnico e legislação para fazer face ao flagelo.

Mas a tragédia humana deste ano – e o Verão ainda mal começou – mostra sem sombra de dúvida que algo mais ainda tem que ser feito.

As imagens do inferno deste ano também são, aliás, elucidativas a esse respeito: muito mato por limpar em torno das casas, florestação até à beira da estrada, sem zona de proteção contra o fogo.

Algum sistema legal e fiscal, baseado num cadastro nacional de propriedades rurais, a par de um mercado concorrencial de serviços nessa matéria, terão de ser implantados para se assegurar que as indispensáveis medidas de prevenção sejam de facto executadas.

E valeria também a pena refletir sobre o papel e a forma como estão organizados os bombeiros voluntários, cuja dedicação ninguém contesta, mas que talvez precisem de estar associados a núcleos profissionais especializados devidamente formados e treinados.

Os incêndios florestais irão, claro, continuar a acontecer. Até porque muitos deles têm causas naturais, como sucedeu agora com o de Pedrogão Grande, que teve início num raio, em tempestade seca.

Isso não pode ser evitado. Mas façamos, ao menos, o que está ao nosso alcance, para evitar que tragédias desta dimensão se voltem a repetir.

Como dizia, já há alguns anos, um especialista silvicultor, “os incêndios florestais em Portugal são uma consequência da ausência de gestão dos espaços florestais. Se queremos resolver o problema, teremos de atuar ao nível das causas que levam a essa ausência de gestão.”

O lema terá de ser, concluía – “Os incêndios florestas não se combatem – previnem-se”.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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