Vila Guilherme “Revelando São Paulo” aos 102 anos

No século XVI, com a intervenção do capitão-mor Jerônimo Leitão, foi dos nativos para as mãos do bandeirante Salvador Pires. Duzentos anos depois, seguiu para José A° Silva e Manoel Lopes. Posteriormente, século XIX, esteve com a baronesa Joaquina Ramalho. Daí, então, já desmembrados de vasta área original, a posse dos 115 alqueires rumou em 12/09/1912 ao empreendedor Guilherme Praun da Silva, um fluminense de Petrópolis, 59 anos, que pagou 80 contos de réis pelo terreno. Nascia, assim, na ‘interiorana’ região norte de São Paulo, margem direita do límpido, tortuoso e venerável Rio Tietê, a ‘villa do Guilherme’.

Aqueles confins nunca mais seriam os mesmos. Visionário e pensando em dinamizar sua propriedade, ele resolveu convocar mão de obra para o trabalho. E escolheu para a tarefa, especialmente, a comunidade portuguesa, em fluxo de imigração para o Brasil. Percebia naquela gente determinação e honestidade, além de traquejo com atividades rurais, pois muitos vinham de aldeias interioranas na Europa. Assim, a memória local registra Guilherme indo de charrete fazer suas cobranças, de posse de uma caderneta, postergando o fato quando o devedor estivesse em dificuldades, angariando com isso simpatia e fidelidade dos moradores, gente simples e lutadora.

Chácaras a preços reduzidos foram oferecidas. E pequenas atividades agrárias se multiplicaram, juntamente com carvoaria, olaria, criações e produção de leite, as vacarias, entre outras ofertas. Um dos elementos mais importantes à época foi a construção de uma ponte de madeira, em direção à divisa dos distritos do Belém e Pari, para facilitar a comunicação, feita normalmente de barco. No início dos anos 1920, timidamente a eletricidade chegava ao pedaço, dando um pouco mais de conforto aos moradores, que paulatinamente viam aparecer grupo escolar, delegacia de polícia e farmácia, entre outros benefícios. Autêntica zona rural.

Devoto de São Sebastião e nascido no dia do santo, 20/01, fundou em 1922 uma capela na parte baixa, se tornando ponto de concentração das atividades religiosas e de lazer dos residentes. Posteriormente, em 1939, a Igreja de N. Senhora da Anunciação, na Rua Maria Cândida, ampliaria também esses quesitos.

João Veloso também se tornou proprietário de muitos lotes em área mais aproximada ao rio, onde junto às lagoas existentes aproveitou para fazer extração de areia para construção. Vários de seus terrenos ladeavam a Sociedade Paulista de Trote, que se tornou um dos marcos do bairro. Originalmente, Guilherme criara em 1937 o Club Hypico. Mais tarde, em 1944, o espaço foi vendido para os amantes das corridas com charretes, ficando ali até 2005, quando se tornou o Parque do Trote. Lamentavelmente, as extrações de areia resultaram para o bairro durante bom tempo um desagradável e oficioso aterro sanitário que, com muito protesto, foi desativado após vários anos de mau cheiro.

Além dos cavalos e dos vários bons times de várzea, afinal, campos para a prática do futebol não faltavam e os craques brotavam feito jabuticabas no pé, a Vila Guilherme era conhecida na cidade pelo Zoológico do Agenor, que na verdade ficava na Vila Maria, pois se localizava na Rua do Imperador, esquina com Rua Ernani Pinto, já lado do bairro vizinho. Fundado em 1942, fechou as portas em 1975. Foi o segundo zôo da cidade, antecedido pelo da Aclimação, inaugurado no final do século XIX. Outro aspecto interessante na divulgação positiva do bairro foi a televisão. Na Rua Dona Santa Veloso, 575, foram instalados a partir de 1967 os teatros da TV Excelsior e, depois, em meados dos anos 70, o SBT, onde eram gravados boa parte dos seus programas até o final da década de 1990, quando se mudou para a Via Anhanguera.

A Vila Guilherme não teve a influência do ‘Tramway’ da Cantareira e tão pouco da Ponte Grande, como a região de Santana. Ou, no caso da Vila Maria, que desde 1923 recebeu bonde elétrico ligando-o à Sé, sem contar a ponte de concreto que chegou em 56. Por isso, seu desenvolvimento foi diferenciado, mais tímido. Ainda nos anos 50, no morro ou na área plana, havia muito espaço livre com vegetação, ruas de terra. Era comum se ver casas com ares campestres. Pipas no ar, bola rolando, esconde-esconde, em meio aos passarinhos e noites profundas, com estrelas brilhando mais que em outros bairros já abastecidos com lâmpadas incandescentes da Light.

Aos poucos, no entanto, a partir dos anos 70, sentiu-se que o fluxo de transformações passou a se acelerar. Era o progresso. Os muros iam ganhando altura e grades. Lares de generosos terrenos, com pomares e jardins, assim como campos de futebol, eram trocados por prédios de apartamentos e galpões comerciais. Especulação imobiliária. Apagava-se o passado valente dos pioneiros cheios de fé e sonhos naquele ‘sertão’ urbano que, vira e mexe, era alagado pelas cheias de um rio quase indomável. Agora são bem outras as periferias da metrópole.

A Vila Guilherme tornou-se em 20 de maio de 1992 distrito municipal. No mapa administrativo ele agrega os bairros Carandiru, Coroa, Jardim Coroa, Chácara Cuoco, Vila Pizzotti, Jardim da Divisa, Vila Bariri, Vila Leonor, Vila Eleonora, Vila Paiva, Vila Santa Catarina, Vila Isolina, Vila Isolina Mazzei e Vila Guilherme. Em 2002 o bairro foi homenageado com o livro “São Sebastião e a Vila Guilherme – Memórias Paulistanas da Zona Norte”, por Benedita Conceição C. Silva e José de Almeida Amaral Júnior, publicado pela Câmara Sócio-Cultural da Zona Norte de São Paulo. Um documento reunindo uma centena de depoimentos de antigos moradores que contam suas experiências de vida. O povo narrando sua luta. Em 2012, em seu centenário de fundação, ganhou o documentário intitulado “Vila Guilherme – Do Pombo-Correio ao E-mail”, TV PUCSP, premiado no concurso “História dos Bairros de São Paulo”, lembrando causos e aspectos pitorescos da região.

Hoje, aos 102 anos, a contemporânea Vila abre seus braços para mais uma vez acolher a festa popular estadual “Revelando São Paulo”: cultura de paz e compartilhamento, integração e diversidade. O local, na capital, torna-se privilegiado anfitrião recebendo toda gente que converge para seus domínios, em um inigualável núcleo de experiências humanas. Bem vindos ao bairro que, em plena era globalizada, busca guardar ainda sua marca interior. Oxalá suas sementes se aprofundem nestas terras e vicejem belos frutos.

São Paulo, 11 de setembro de 2014

 

Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.

1 Comment

  1. gostaria de saber da programação pois todo ano participo desde quando era no parque da agua branca
    amo este trabalho, conhecer as cidades do interior e as pessoas e seus costumes, parabéns!

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