Junho – Mês estadual do Chorinho em São Paulo

RODAS DE CHORO MOVENDO-SE AO FUTURO

 

Bola de cristal, jogo de búzios, cartomante/ Eu sempre perguntei/ Como será o amanhã/ Como vai ser o meu destino? (João Sergio)

 

Livro_ChorandonaGaroaPensar o futuro é decifrar os significados dos caminhos já percorridos pela história. Esta é um fenômeno cultural, uma tentativa do ser humano passar/ transmitir saberes/ experiências às gerações posteriores. A história é memória, busca da conservação da existência, laço entre o ontem e o hoje e, mais que isso, recurso contra a catástrofe inexorável da morte. Por isso, nos diversos grupos humanos marca-se, conta-se, documenta-se, constrói-se a história para que fatos e pessoas sejam perpetuados no tempo, no futuro.

Jacob Pick Bittencourt, mais que bandolinista e compositor, foi um meticuloso pesquisador do choro. Ele arriscou, pelas suas avaliações, em uma entrevista concedida para o jornal paulista O Tempo, na primeira metade dos anos 1950, um destino trágico para o gênero: em 10 anos acabaria sua história. O violonista paulistano Antonio D’Áuria, líder do Conjunto Atlântico, muito amigo de Jacob e que realizava semanalmente uma tradicional roda que recebia chorões de todo o Brasil na Barra Funda, em entrevista ao Jornal da Tarde, no fim dos anos 70, foi menos enfático, mas também pessimista quanto ao porvir: ‘o choro é complicado, o jovem hoje tem mais facilidade com a música pop, assim, a renovação é difícil’. São dois exemplos entre vários. E eles erraram. Como diria Assis Valente ‘o tal do mundo não se acabou’. Porém, não virou um mar de rosas. É preciso atenção.

Se observarmos a trajetória do choro historicamente falando, podemos notar que as décadas que dobram a esquina do século XIX para o XX trazem os chorões como um grande número de músicos. Isto é provado pelo livro “O Choro” redigido em 1936 (quando o país tinha cerca de 70% de sua população no meio rural) por Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, carteiro violonista/ cavaquinista, traçando um perfil pioneiro das primeiras gerações de chorões cariocas, com mais de 280 nomes. Precioso documento. O choro estava nos quintais, nas festas, nos bares, nos teatros e nos coretos. As bandas tocavam choro. Foram escolas de instrumentistas. Elas fizeram as primeiras gravações mecânicas no Brasil e os chorões reinavam.

Aos poucos, com o aperfeiçoamento do processo de gravação pela eletricidade e a radiodifusão a partir dos anos 1920, temos paulatino avanço da musica cantada em relação à instrumental (característica marcante do choro, embora existam vários choros cantados). Além disso, outros gêneros, internos e estrangeiros, vão tomando sistematicamente a atenção do público. Os ‘regionais’, conjuntos do choro, vão acompanhar as vozes do rádio, ocupando um lugar mais restrito para o gênero propriamente dito. Contudo, em que pese a pressão cada vez maior sofrida com a questão mercadológica, o choro foi buscando driblar as adversidades, incorporando elementos novos, sejam instrumentais, regionalistas ou nas próprias harmonias. Sempre foi assim. Sem deixar o espírito original. É uma linguagem brasileira.

Numa brevíssima perspectiva, temos que ao redor de 1870, Callado e o Choro Carioca ficaram famosos com seu grupo de flauta (ou outro instrumento solista), violões e cavaquinho, a ‘formação ideal’ para Batista Siqueira. Depois, Chiquinha Gonzaga e seu piano acabaram por entrar no grupo. O pianista Nazareth com seus tangos e valsas foram fundamentais na fixação do gênero choro. Durante as primeiras décadas do século XX, Tute surge com o violão de 7 cordas e as ‘baixarias’. O pandeiro demorou em aparecer cerca de 40 a 50 anos até ser incorporado e dar mais força ao ritmo. Pixinguinha trouxe o terreiro, a negritude e pitadas de jazz, que ouviu pelo mundo afora. Os Turunas da Mauricéia tocavam o sertão e chacoalharam o sudeste. Desde os anos 40 o genial Garoto, Radamés, Severino Araújo, Orlando Silveira, Esmeraldino Sales, Portinho entre outros, vão dando novas cores, sofisticando os arranjos. Isto, sim, com os meios de comunicação cada vez mais fechados para os chorões. Na década de 1970 aparecem os Clubes do Choro – e programas como os de Julio Lerner na TV Cultura, verdadeiras trincheiras nessa guerra –, Marcus Pereira com sua idealista gravadora, e novos trabalhos de referência, como o álbum “Memórias – Chorando” de Paulinho da Viola (1976), as experiências do eletrificado grupo A Cor do Som, da Camerata Carioca, de Canhoto da Paraíba, da Oficina de Cordas de Pernambuco, de Plauto Cruz, de Evandro do Bandolim, de Izaías e Seus Chorões, de Raphael Rabello, de Laércio de Freitas etc. Alguns Clubes lograram êxito, caso de Brasília e o de Santos, e permaneceram. Vários se extinguiram. Entretanto, os talentos continuam aflorando, mesmo com o eclipse do gênero perante o grande público, caso hoje de instrumentistas como Danilo Brito, Milton Mori, Edmilson Capelupi, Proveta, Alessandro Penezzi, Daniel Migliavacca, Hamilton de Hollanda, Yamandu Costa entre várias outras perolas de nossa musicalidade que conseguem adeptos pelo mundo afora, provando cabalmente a qualidade e potencial de nossa música. “Tico-tico no Fubá” é conhecido até entre os esquimós.

Se o que encontramos hoje é, então, uma descaracterização da cultura brasileira, resultante desse processo violento executado pela indústria cultural, cabe empreender a defesa destes valores de forma contundente e sem sermos xenófobos. Implementar uma política sobre os meios de comunicação é um passo importante, afinal, são concessões públicas. Na mesma medida, inserir a musica no currículo escolar de forma efetiva, com investimento e busca de qualidade, incentivando também a execução de cursos livres nos clubes, nas escolas de samba e também nas universidades, assim como o jazz e a música dos Beatles já são também motivos de estudos nos EUA e Europa. Multiplicar ouvintes, instrumentistas e adeptos. Em um mundo globalizado, nenhum povo pode se relacionar com os demais de igual para igual se não tiver plena consciência de sua identidade. Como patrimônio nacional o futuro do choro deve ser tratado com firmeza de propósito. Defendemos esta posição no pioneiro livro “Chorando na Garoa – Memórias Musicais de São Paulo”, que teve uma edição especial da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, em setembro de 2013.

Concluo com uma reflexão do educador brasileiro Paulo Freire que dizia ‘viver a História como tempo de possibilidade’. A vida, então, não é inexorável, imóvel, estável. Ela é luta e, portanto, depende da gente. Assim, o futuro é uma esperança na existência humana. As rodas de choro poderão trilhar melhores e ampliados caminhos somente se nós formos determinados em sua construção.

São Paulo, 06 de Junho de 2014

 

Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.

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