Contra Lula e em defesa de Lula. Por Carlos Fino

Por Carlos Fino

LuladaSilvaEstava escrito nas estrelas – culminando dois anos de investigações sem precedentes no Brasil, os procuradores da Lava Jato, em Curitiba, deram a semana passada o passo final rumo a um objetivo que em retrospectiva sempre pareceu orientá-los: acusaram o ex-presidente Lula da Silva de ser o principal responsável pelo gigantesco esquema de corrupção que começou com o Mensalão e terminou no Petrolão.

O trabalho dos investigadores tem sido notável –  desvendando um esquema multimilionário de desvio de dinheiros públicos (com algumas ramificações em Portugal), envolvendo empreiteiras, funcionários da Petrobras, operadores financeiros e políticos – e em termos gerais não há como negar as responsabilidades de Lula, que presidiu aos destinos do país no período em que ocorreram os factos.

Mas daí a transformá-lo numa espécie de chefe de Máfia, distribuindo cargos e administrando diretamente o esquema – como pretende agora o Ministério Público Federal, incriminando-o e procurando a sua condenação judicial, vai um salto lógico e processual que não parece totalmente fundamentado para além de toda a dúvida legítima.

Lula não é certamente um santo e desde a célebre reunião com o seu vice, José Alencar (já falecido), em que os dois deixaram aos subordinados o encargo de negociar a partilha do poder entre PT, PMDB e aliados menores que sempre pairou uma suspeita de esquemas pouco transparentes.

Esse terá sido, aliás, o momento crucial em que Lula selou um pacto com o Diabo – abandonando de vez as veleidades moralistas da história do PT e aceitando pragmaticamente, para poder governar, enveredar pelos caminhos há muito estabelecidos no Brasil: nomeação de homens de confiança para lugares-chave das empresas públicas, concessão de contratos sobrevalorizados às empreiteiras em troca do financiamento dos partidos políticos envolvidos no esquema.

Politicamente, a questão é saber se Lula tinha alternativa. Concretamente, se teria podido utilizar a enorme popularidade de que então disfrutava para denunciar esses caminhos ínvios e encetar ou pelo menos esboçar um começo de reforma do sistema.

Teria havido uma oportunidade que Lula desperdiçou? Difícil julgar. Provavelmente, não. Seja como for, pouco atreito a filosofias e ideologias, Lula, o pragmático astuto, optou pelo realismo. A diferença far-se-ia não pela viragem do modus operandi, mas pela distribuição de riqueza através de  programas sociais, que além de granjearem popularidade e votos, tinham ainda a virtude de dinamizar a economia pelo aumento do consumo através da inclusão no mercado de milhões de desfavorecidos.

Com a alta do preço das commodities ajudando, durante alguns anos o esquema funcionou para agrado de todos – empresários e banqueiros, que viram os lucros aumentar, e grandes massas da população que passaram a ter acesso pela primeira vez a alguns bens de consumo básicos e até a poder viajar… Era aquilo a que os russos chamam saciar os lobos e poupar a manada…

Mas se Lula teve responsabilidades políticas inegáveis, já será mais difícil provar que agia como responsável directo de esquemas ilícitos e ainda mais que foi pessoalmente beneficiado.

Até agora, pelo menos, as acusações baseiam-se em delações de acusados com motivos prováveis de vingança política e os benefícios que Lula poderia ter colhido não se chegaram a concretizar totalmente. Além disso, mesmo tudo somado, tais eventuais benefícios são bem escassos quando comparados com os milhões recolhidos por outros envolvidos.

Por outro lado, e apesar dos seus inegáveis méritos no combate à corrupção, que levou já a múltiplas condenações e devolução de muitos milhões aos cofres públicos, a Lava Jato também não está isenta de críticas sérias formuladas por observadores imparciais.

Desde desnecessárias detenções coercitivas à espectacularização mediática das denúncias e das operações, passando por escutas fora do prazo legalmente concedido e pela divulgação de gravações com a aparente finalidade de desmoralizar politicamente os envolvidos – tudo aspectos que contrariam as boas práticas de um Estado de Direito e oferecem o flanco para suspeitas de intenção política, extravasando o estrito cumprimento das normas processuais.

Suspeitas que se reforçariam se Lula viesse agora a ser julgado e condenado rapidamente, retirando-o assim do processo político e em particular de qualquer intervenção das eleições gerais para a presidência de 2018, praticamente silenciando a corrente popular que ele ainda representa.

A própria convivência dos investigadores com o mesmo juiz por período prolongado – quase constituindo uma só equipa – elimina o distanciamento que a rigorosa isenção judicial requer. Num Estado de Direito, ninguém está acima da lei, mas o cumprimento estrito das normas e princípios processuais, a começar pelo ónus da prova e a plena isenção dos juízes, é condição sine qua non de justiça.

Além disso, em casos como este, também não podem deixar de ser tidos em conta todos os condicionalismos e circunstâncias.

Lula tem certamente algumas responsabilidades, mas não se pode esquecer que foi duas vezes eleito livremente pela grande maioria dos brasileiros e deixou a presidência com mais de 80% de aprovação, num período em que o Brasil liquidou a sua dívida ao FMI e obteve uma projecção internacional ímpar, que deixou dele e do país uma imagem de grande respeito e admiração no mundo inteiro. Arrastar Lula pela lama na sua velhice, ainda que em nome de uma moralidade que – como mostram a actuais circunstâncias políticas –  está longe de estar garantida, seria autofágico para o Brasil.

Ainda que viva agora o seu momento Andreotti – um dos líderes mais destacados da política italiana do pós-guerra, que acabou por ser julgado por ligações com a Máfia – seria bom ter presente que há também, na política dos Estados, um momento Gerald Ford – o vice de Nixon cujo primeiro decreto, quando assumiu, foi perdoar o seu antecessor.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

1 Comment

  1. Quanto mais ilustrado for o passado de um homem, mais elevado seja ou tenha sido seu cargo, e mais importantes tenham sido suas funções, MAIOR será a sua RESPONSABILIDADE perante os ATOS PRATICADOS.O mesmo crime praticado pelo soldado e pelo general, será punido com maior RIGOR no último caso, pois o general DEVE TER MAIS CONSCIÊNCIA do ato cometido. E nem mesmo a idade pode ser obstáculo para a punição. Após esta – e se for o caso – poderá ser concedido INDULTO e ou ANISTIA.

    O respeito ao Poder Judiciário DEVE ser geral. JVerdasca

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