Brasil – o que mais me espanta nesta crise, por Carlos Fino

Por Carlos Fino

PalacioAlvorada_BrasiliaCompreendo tudo – a insatisfação e o cansaço das classes médias e até de alguns sectores populares com o governo do PT; a luta dos empresários contra os impostos e a burocracia do Estado; a indignação com os escândalos de corrupção, em particular com as dimensões do Petrolão; as manifestações da Paulista e o manifesto sentimento de alívio desses grupos com o afastamento de Dilma Rousseff da presidência.

No plano das percepções de parte considerável da população, tratou-se afinal de pôr termo ao excepcionalismo brasileiro dos últimos anos, expresso nos governos petistas.

Um excepcionalismo de cariz esquerdista, com as suas reticências à expansão da iniciativa privada, o seu estímulo e apoio aos mais diversos direitos – dos laborais às políticas sociais de distribuição de renda, passando pelas quotas para negros nas universidades e, no plano internacional, na ênfase colocada nas relações Sul-Sul e nos BRICs como indisfarçáveis pólos de contra-poder face à tradicional hegemonia norte-americana e europeia.

Tratou-se, portanto, de pôr fim a tudo isso e de regressar a formas de estar mais conhecidas e por isso consideradas mais “normais” – predomínio do rigor financeiro sobre a ideologia e os projetos de inclusão, num país de Ordem e Progresso, como queria o positivismo e está consagrado na bandeira.

Compreendo até a hiper-emotividade expressa naquela inesquecível sessão da Câmara dos Deputados do dia 17 de Abril, na votação pelo processo de impeachment. Dizem-me que aconteceu o mesmo nos anos 90, quando do processo contra Collor de Melo, e eu entendo. Fruto do cruzamento de portugueses, índios e negros, Brasileiro é assim mesmo: emotivo, extrovertido, expansivo. E sendo o país e a democracia tão jovens, não temos por que exigir dos seus deputados comportamentos mais cordatos e controlados, como se estivéssemos na pragmática Inglaterra, onde a democracia tem raízes que remontam à Magna Carta, em 1215!

Até aí, tudo bem, mesmo porque, tudo ou quase foi sendo desenhado de acordo com cenário e cronologia traçados pelo Supremo, tendo em conta os precedentes.

O que já não entendo bem é como pôde, na Câmara, um líder parlamentar acusado no Supremo liderar um processo de impeachment contra uma chefe de Estado eleita; e como pode agora outro líder, também com processos no Supremo, dirigir a fase seguinte do impeachment no Senado. Para já não falar, claro, nos processos de que são alvo grande parte dos deputados e senadores.

Como ironizava há dias um amigo meu brasileiro, parece que “ser alvo de processos não é, no Brasil, impeditivo de exercer cargos públicos; não ser suspeito, sim!”

Também me espanta que membros do Supremo se pronunciem com frequência nos media, tomando partido e intervindo abertamente no debate político, quando toda a prática internacional recomenda a máxima discrição aos titulares do Judiciário. Alguns, para minha estupefacção, vão ao ponto de se pronunciarem sobre causas que terão de julgar.

Para não deixar de falar do meu campo profissional, igualmente me espanta que haja tanto jornalismo de comentário sem contraditório, contra a recomendação deontológica que prescreve equidade de tratamento.

Mas o que mais me espanta não é nada disso. O que mais me espanta no processo em curso no Brasil – seja o que for que se lhe queira chamar – é a viragem política a que, sob a liderança do presidente interino Michel Temer, estamos a assistir no país, antes mesmo de terminado o processo de impeachment, dando por consumado o afastamento definitivo de Dilma Rousseff, e prejulgando sobre o que irá acontecer no Senado.

Com a agravante de fazerem parte do novo executivo vários investigados na Lava Jato e do novo líder do governo no parlamento ser até alvo de suspeita por participação em tentativa de assassinato!

Se o processo de impeachment no Senado é um julgamento – e por isso será presidido pelo presidente do Supremo – não será a viragem política que está a ser consumada um desrespeito pela presunção de inocência?

Dir-me-ão que as mudanças são necessárias e urgentes e o país não pode esperar. Talvez, concedo. Mas, no meu modesto entender, ainda que assumindo a indispensável gestão corrente dos assuntos do Estado, o vice teria, no mínimo, de aguardar primeiro a sentença dos senadores antes de proceder a mudanças mais profundas.

Mesmo nesse caso, aliás, também tenho dúvidas sobre a amplitude das mudanças a que estaria autorizado o novo presidente. Vejamos porquê. Tendo sido eleito numa certa base e com um certo programa, não deveria o vice, mesmo assumindo a chefia do Estado, ater-se a esse programa aprovado nas urnas até à realização de novas eleições? Quem lhe conferiu poder para inverter o curso?

E já que o modelo norte-americano é aquele pelo qual se inspirou o modelo político brasileiro, consideremos o seguinte caso: se um presidente democrata sofresse impeachment, assumindo o vice, poderia este aplicar o programa de governo republicano, ou vice-versa?

Desde a origem dos tempos, antes e depois de Cristo, a luta pelo poder está muitas vezes ligada à intriga e à traição. Na velha Grécia ou na velha Roma, na Inglaterra ou na Rússia medievais, na Florença ou Veneza renascentistas, os exemplos são inúmeros e comprovam a asserção. Nessa medida, os episódios da série televisiva The House of Cards, na Washington dos nossos dias, não trazem nada de novo – na essência, apenas confirmam que a ambição humana é sempre maior que os princípios.

Mesmo assim, há um mínimo de regras de civilidade e direito  cuja observância é indispensável para se poder granjear respeito interno e internacional. Neste momento de crise e mudança, esse é o grande desafio que hoje se coloca ao Brasil.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

 

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