Um panorama da literatura brasileira no século XX

 Por Adelto Gonçalves

I

Escritores brasileiros do século XX – um testamento crítico (Taubaté-SP: LetraSelvagem, 2013), de Nelly Novaes Coelho (1922), doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), reúne estudos e notícias bibliográficas de 81 autores que se destacaram no panorama literário do País, mas não tem por objetivo estabelecer uma classificação daqueles que seriam os melhores. É, isso sim, resultado de mais de meio século de pesquisas, leituras e releituras de obras apresentadas em cursos universitários.

Por isso, pode-se sentir a ausência de alguns escritores – muitos ainda com a obra em construção – ou ficar-se surpreso com a presença de um ou outro nome menos conhecido, mas, de qualquer modo, trata-se de um inventário do que a literatura brasileira produziu ao longo do século XX, ainda que não tenha uma pretensão totalizadora nem se apresente para fins de marketing como um levantamento completo.

Por isso, se não se encontrar determinado nome neste livro, como diz o editor Nicodemos Sena, ele mesmo incluído na obra como romancista e contista, não se pode concluir que se trata de lacuna ou mesmo falha do crivo crítico da autora, mas apenas diversidade de escolha, o que constitui um fenômeno salutar e até mesmo natural, levando-se em conta “o universo plural e riquíssimo em possibilidades como o é a literatura brasileira, a qual deve expressar uma extensão geográfica e cultural com dimensões continentais”. Portanto, sorte do autor cuja obra teve pelo menos a condição de atrair os olhos da pesquisadora em determinado momento.

Dessa maneira, este livro monumental, de 976 páginas, não só analisa as obras de nomes consagrados como Lima Barreto (1881-1922), José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001), Câmara Cascudo (1898-1986), Oswald de Andrade (1890-1954)), Aníbal Machado (1894-1964), Graciliano Ramos (1892-1953), Guimarães Rosa (1908-1967), José J. Veiga (1915-1999), Autran Dourado (1926-2012), Otávio de Faria (1908-1980), Érico Veríssimo (1905-1975), Bernardo Élis (1915-1997), Josué Montello (1917-2006), Fernando Sabino (1923-2004), Murilo Rubião (1916-1991), Moacir Scliar (1937-2011) e João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), como outros mais antigos que estão esquecidos em razão do desinteresse de editoras que seguem as tendências do mercado, tais como Cornélio Pena (1896-1958), Adonias Filho (1915-1990), Campos de Carvalho (1916-1998) e Gustavo Corção (1896-1978).

Sem contar autores que são ainda conhecidos apenas num círculo restrito de leitores, como Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), Everaldo Moreira Veras (1937-2011), Vicente Franz Cecim (1946), Victor Giudice (1934-1997) e Xavier Marques (1861-1942), além de Alaor Barbosa (1940) e Antônio José de Moura (1946), ambos em atividade e ligados à literatura produzida em Goiás. E vários outros que ganharam visibilidade a partir dos anos 70 como Antônio Calado (1917-1997), João Antônio (1937-1996), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Deonísio da Silva (1948), Edilberto Coutinho (1933-1995), Haroldo Maranhão (1927-2004), Osman Lins (1924-1978), Oswaldo França Júnior (1936-1989), Samuel Rawet (1929-1984) e Raduan Nassar (1935).

II

Como exemplo do fazer-crítico da professora Nelly Novaes Coelho, pode-se, aleatoriamente, transcrever aqui o que diz, por exemplo, do romance Quarup, de Antônio Calado, escrito nos anos de 1965-66, época da instauração do golpe militar de 1964 e de todas as iniquidades que trouxe à vida nacional, com perseguições, torturas e mortes: “(…) por um lado, (o romance) exorciza a incomensurável frustração de um Brasil traído em seus sonhos de transformação político-social, e por outro escava os ‘subterrâneos’ do homem pós-moderno (pós-Darwin), aquele que, perdendo sua origem sagrada, pergunta por si mesmo (…). Romance essencialmente complexo, Quarup, tal como o simbolismo do título, se constrói sob o signo da transformação, da metamorfose”.

Já a respeito de Ermos e gerais (1944), de Bernardo Élis, a ensaísta observa que os contos que o compõem, surgindo à época da Era Vargas e da Segunda Guerra Mundial, quando o romance do Nordeste já chegara ao auge, com a denúncia do sistema patriarcal – ou melhor, feudal, que, aliás, ainda persiste em muitos Estados brasileiros, até hoje dominados por clãs familiares –, “se revelam, como arte maior, ao testemunharem a trágica alienação do homem que vivia (ou desvivia?) nos sertões do Centro-Oeste”. Para Nelly Novaes Coelho, Bernardo Élis cria uma nova linguagem, “cujo tom aparentemente lúdico e descompromissado, como a de um “mero contador de estórias”, põe a nu a situação do “homem moldado/dominado, ora pela natureza em bruto, ora pelo despotismo desumano dos poderosos”.

III

De O tetraneto del-Rei (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982), de Haroldo Maranhão, Prêmio Guimarães Rosa de 1980, reinvenção da saga da formação do povo brasileiro no século XVI, a professora destaca, sobretudo, “o singular domínio da escrita novelesca” do seu autor. Considerando este livro um “verdadeiro desafio lançado ao leitor”, a professora afirma que o romance é daqueles que “exigem uma prévia e substancial leitura de mundo, que possa servir de guia aos que se atrevem a percorrer suas labirínticas veredas”.

O romance reinventa a história de Jerônimo d´Albuquerque (c.1510-1584), irmão de Brites d´Albuquerque, mulher de Duarte Coelho Pereira (c.1485-1554), primeiro donatário da capitania de Pernambuco.  Atingido por uma flecha, Jerônimo perdeu um olho e passou a ser conhecido como o Torto. Teve decisiva participação na implantação dos primeiros engenhos de açúcar e na pacificação dos índios tabajaras. Aprisionado pelos indígenas, teria sido salvo pela filha do cacique Uirá Ubi, Tindarena ou Tabira, com quem se casaria.

Em nome da verdade, diga-se que, quase ao mesmo tempo, O tetraneto del-Rei obteve também menção honrosa do Prêmio de Romance José Lins do Rego de 1980, da Livraria José Olympio Editora, ao lado de Os vira-latas da madrugada (1981), deste resenhista, e de Póvoa-mundo (1981), de Dirceu Lindoso (1932). O primeiro lugar do Prêmio, que marcou o retorno dos tradicionais concursos promovidos pela José Olympio depois de alguns anos de interrupção, ficou para Trilogia do assombro, de Helena Jobim (1931-2015). Os livros premiados foram publicados pela José Olympio no ano seguinte, menos o de Haroldo Maranhão, que optou pela Livraria Francisco Alves Editora e por reconhecer apenas o Prêmio Guimarães Rosa de 1980.

IV

Nelly Novaes Coelho, nascida em São Paulo, foi aluna de Mário de Andrade (1893-1945) na disciplina História da Música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, pouco antes do escritor modernista se desligar do cargo de professor catedrático. Dedicou-se aos estudos de piano, mas não pôde fazer um aperfeiçoamento na Itália, depois de vencer um concurso internacional, em razão das circunstâncias adversas provocadas pelo início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Quando a Guerra acabou, já casada, seus planos eram outros: fez licenciatura na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP na área de Letras Neo-Latinas (1959). Iniciou em 1960 a carreira de docente universitária, como assistente do professor Antônio Soares Amora (1917-1999). Foi professora também na Faculdade de Letras de Marília-SP. É doutora em Letras (1967) e livre-docente pela USP (1977). Atuou como crítica e ensaísta no antigo Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Aposentada desde 1992, mantém-se em atividade, dedicando-se à pesquisa e análise da literatura contemporânea brasileira e portuguesa.

Publicou dezenas de livros sobre Literatura Contemporânea, Teoria Literária, Estratégias de Ensino e Educação, além de dicionários. Entre esses, destacam-se O ensino da literatura (1966); Mário de Andrade para a nova geração (1970); Guimarães Rosa (1975); Literatura: arte, conhecimento e vida (2000); Dicionário crítico de escritores brasileiros (2002); e Escritores portugueses do século XX, Lisboa (2007), entre outros.

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Escritores brasileiros do século XX – um testamento crítico, ensaios, de Nelly Novaes Coelho, Taubaté-SP: Associação Cultural LetraSelvagem 976 págs., R$ 120,00, 2013. Site: www.letraselvagem.com.br. E-mail: [email protected]

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Por Adelto Gonçalves
Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: [email protected]

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