A tomada de Lisboa e o início de Portugal

A Borgonha era importante na Europa na virada do 1º milênio. Ali vivia São Bernardo, o “fazedor de papas”. Ali nasceu a Ordem dos Templários que tanto influenciaria a formação de Portugal. Desde o século 12, São Bernardo “revirava os olhos” para a península ibérica. Seu tio, o Duque Henriques, ajudara Dom Afonso, Rei de Leon e Castela, na luta contra os mouros. Em recompensa, recebeu a mão de Teresa e por dote o Condado Portucalense, que ia da foz do Minho até o Douro. Falecido, sua mulher rendeu vassalagem ao Rei de Leon. O filho, Afonso Henriques, na maioridade, isolou a mãe num castelo, casou-se com a filha de Amadeu III, Rei da Sabóia, aliado do duque de Borgonha. É proclamado Rei de Portugal após a vitória de Ourique contra os mouros. A Ordem dos Templários foi anunciada pelo Papa em janeiro de 1128, em Troyes. Afonso Henriques imediatamente enviou à Abadia de São Bernardo, em Clairvaux, o penhor de sua fidelidade a ela, corresponsável pela consolidação do reino português. Para festejar os 40 anos de Afonso Henriques em 1.147 d.C., foi lançada oficialmente a II Cruzada, com origem na Borgonha, pelo Papa Eugenio III, ex-noviço de São Bernardo. Formou-se um contingente de 3 mil homens. Discute-se ter a Armada parado no Porto para recuperar-se de uma tempestade no Golfo de Biscaia (ocasionistas), ou se já estava secretamente prevista a escala (deterministas). O fato é que Afonso Henriques levou os Cruzados à “missão cristã” de conquistar Lisboa aos muçulmanos. No mais, a Segunda Cruzada foi um redondo fracasso. Muitos cavaleiros ficaram em Portugal, dentre eles Bertrand Calmon du Pin, do Castelo de Cahors, Aquitânia, sul da França. O único documento testemunhal da tomada de Lisboa foi escrito em latim pelo capelão normando da expedição, segundo o livro “A Primeira Aldeia Global – Como Portugal Mudou o Mundo”, de Martin Page, Lisboa. 12ª ed., 2013. Mal tinham chegado os Cruzados e já os normandos e ingleses tinham passado ao ataque. Declaram, entretanto, que só iriam tomar a cidade se pudessem pilhar os bens sem os partilhar com as tropas cristãs portuguesas. D. Afonso Henriques cedeu com nobreza: “Constantemente acossados pelos muçulmanos, certamente que a nossa sina não é acumular riqueza. Tudo o que as nossas terras possuem podem considerar como vosso. (…) Os dias que se seguiram foram passados entre escaramuças e trocas de insultos. Os cristãos gritavam que Maomé era filho de uma prostituta, enquanto os muçulmanos, cuspindo e urinando nos crucifixos, os atiravam contra os cavaleiros. (…) Os bretões pescavam na margem sul do Tejo, um grupo de muçulmanos atacou, matando vários e fazendo cinco prisioneiros. Como represália, os ingleses organizaram um assalto à margem sul da cidade de Almada, regressando com 200 prisioneiros muçulmanos e mais de 80 cabeças cortadas (…). Empalaram as cabeças em lanças e agitaram-nas por cima das muralhas de Lisboa. Vieram ter com os nossos, suplicando-lhes que lhes dessem as cabeças que tinham sido cortadas, acrescenta o capelão cronista. Tendo-as recebido, voltaram para dentro das muralhas chorando a sua dor. Durante a noite, em quase todas as zonas da cidade, apenas se ouvia a voz da mágoa e o lamento da saudade. A audácia deste feito transformou-se no pior terror para o inimigo.”
Após 15 semanas, os alemães conseguiram, finalmente, escavar uma passagem por debaixo da muralha leste. Colocaram material inflamável na passagem e incendiaram-na. “Quando os muçulmanos se aperceberam, depuseram as armas à nossa frente, estenderam as mãos em sinal de súplica e pediram tréguas. Saíram da cidade cinco homens para negociar a rendição com o Rei D. Afonso Henriques. Um grupo de cavaleiros tentou matá-los, mas foram impedidos pelos portugueses. Perante olhares estupefatos normandos e ingleses, por um lado, e alemães e flamengos, por outro, envolveram-se numa violenta discussão sobre a divisão do espólio. (…) Assim que os muçulmanos abriram as portas, os cavaleiros irromperam e de imediato se lançaram em atos desenfreados de assassínio, violação e pilhagem. A ira estender-se-ia ao próprio bispo de Lisboa, a quem cortaram o pescoço. Muitos cristãos empunhavam crucifixos e imagens de Nossa Senhora, na esperança de que os poupassem. Foram chacinados, acusados de serem muçulmanos blasfemos a tentarem apenas safar-se. Ah, como todos exultaram, continuou o capelão dos cavaleiros: Ah, como todos estavam verdadeiramente orgulhosos! Ah, que quantidade de lágrimas, de alegria e de piedade, foram derramadas, quando, para honra e louvor de Deus e da Santíssima Virgem Maria, a insígnia da Cruz salvadora foi colocada sobre a mais alta torre da cidade como penhor da sua submissão, enquanto o nosso arcebispo e o nosso bispo, acompanhados pelo clero, entoaram, em lágrimas e repletos de júbilo, o Te Deum Laudamus.”

 

DR. SACHA CALMON NAVARRO COELHO
Prof. Titular das Faculdades Federais de Direito do Rio de Janeiro e de Minas Gerais; Autor do “Curso de Direito Tributário Brasileiro”; Sócio-Fundador do escritório há 21 anos; Ex-Magistrado da Justiça Federal do Brasil; Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria da Fazenda de Minas Gerais, iniciou uma coluna quinzenal no Jornal Mundo Lusíada.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: